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“A VIDA AO RÉS-DO-CHÃO”: UM ESTUDO DO GÊNERO CRÔNICA - Resenha do livro de Antonio Candido escrita por Joana Leopoldina de Melo Oliveira (UFRN)

 

Antonio Candido, no texto “A vida ao rés-do-chão” fala um pouco sobre a história da crônica e sua evolução no Brasil. Para o estudioso, com o passar dos anos esse gênero tornou-se bem brasileiro “pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade que aqui se desenvolveu” (1984, p7). Isso se deve principalmente aos nossos cronistas (folhetinistas), homens que transitavam entre os jornais e a literatura naquela época. Nomes como: José de Alencar, Machado de Assis, Olavo Bilac, entre outros, se apropriaram desse gênero e deixaram sua marca e seu estilo nos textos produzidos no jornal do período. A crônica nasceu no jornal como folhetim, e este era o espaço do jornal dedicado à publicação de variedades, entre elas os romances folhetinescos (como o francês Rocambole, de Ponson Du Terrail), comentários sobre as mais variadas coisas, etc. O folhetim tinha um espaço definido nos jornais, o rodapé ou, em francês, rez-de-chaussée (rés-do-chão), espaço voltado para o entretenimento. Portanto, assim nasceu o gênero crônica e essa é a sua relação inicial com o rés-do-chão. No seu texto, Candido também cita a história da crônica, vejamos: 2 Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia, - políticas, sociais, artísticas, literárias. [...] Aos poucos o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje. (1984, p.7) O primeiro significado do gênero com o rés-do-chão foi, como vimos acima, sua posição no jornal, entretanto, ao longo dos anos ela se tornou bem íntima do leitor, com uma linguagem coloquial e simples, parecia mesmo ser um gênero menor, diferentemente dos grandes romances e poesias, cuja linguagem rebuscada e temas complexos encantam o leitor. Por isso, o nosso literato afirma que: “A crônica não é um ‘gênero maior’. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. [...] Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor” (1984, p.5). E por isso, segundo Candido, ela fica mais perto de nós e serve como caminho para a literatura. Por ser filha do jornal e, dessa forma, não foi feita inicialmente para ser publicada em livros, era um tipo de leitura que no dia seguinte seria descartada, jogada fora ou era usada para “embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha” (1984, p.6). Talvez por não ter pretensões em durar, o nosso crítico afirma que: O seu intuito não é dos escritores que pensam em ‘ficar’, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. Por isso mesmo consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um, e quando passa do jornal ao livro, nos verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava. (1984, p.6) O rés-do-chão é realmente o melhor lugar para a crônica. Este parece ser o principal motivo do seu sucesso: a despretensão e a simplicidade da linguagem que se aproxima do nosso modo de ser e de falar. Alguns desses textos conseguem se eternizar através das publicações em livros e, especialmente, permanecendo na memória dos seus leitores. Daremos destaque aqui ao cronista Rubem Braga, ele que só foi cronista e que não se considerava um escritor, apenas um jornalista. Com a mesma despretensão do gênero que o consagrou, o nosso “velho Braga” 1 , como era conhecido, conseguiu permanecer e se destacar na literatura brasileira apenas escrevendo crônicas. Segundo Davi Arrigucci Jr.: “Sem dúvida, se tratava de um cronista, de um narrador e comentarista dos fatos corriqueiros de todo dia, mas algo ali configurava a crônica, 1 Termo usado por Davi Arrigucci Jr. no seu texto “Braga de novo por aqui”. In: BRAGA, Rubem. Melhores contos. São Paulo: Global, 2001. 3 dando-lhe uma consistência literária que ela jamais tivera” (2001, p. 5). Utilizaremos os textos desse cronista, que se destacou entre os demais por se dedicar quase que exclusivamente ao gênero, para mostrar algumas características importantes da crônica e que foram citadas por Antonio Candido no seu famoso prefácio. 2. O grande prestígio da crônica: a oralidade na escrita De acordo com Antonio Candido, essa é a principal característica da crônica atual. Para ele, “o seu grande prestígio atual é um bom sintoma do processo de busca da oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e uma aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo. E isto é humanização da melhor” (1984, p.8). Sobre essa humanização, o crítico comenta e compara que hoje os professores pedem para os alunos lerem mais crônicas, diferentemente do tempo dele em que pediam para lerem discursos, sermões, e acrescenta: “Fico comparando e vendo a importância deste agente de uma visão mais moderna na sua simplicidade reveladora e penetrante” (1984, p.8). Nos nossos dias, ler crônicas parece ser um caminho para a literatura, o texto se humaniza, ou seja, proseia com o leitor usando um tom familiar, e isso aproxima os novos leitores da língua, da leitura e, principalmente, da literatura, pois “ensina a conviver intimamente com a palavra” (1994, p.6). O tom de conversa fiada, transmitindo a oralidade através da escrita pode assemelhar o narrador da crônica ao narrador da tradição oral, aquele que contava os causos que eram transmitidos oralmente entre as pessoas. No caso do cronista Rubem Braga, ele é considerado um cronista contador de histórias, especialmente porque traz algo que lhe é peculiar: a sua experiência. Segundo Davi Arrigucci Jr.: “Uma experiência que se transmitia por histórias, pela arte do narrador, que aprecia vir de outros tempos e retomar o fio da tradição oral, nunca interrompido no Brasil, enlaçando-se ao mesmo novelo dos contadores de causos imemoriais.” (2001, p.6). O cronista quer conversar, dialogar com o seu leitor, transmitir suas experiências de vida através de uma conversa que parece meio sem rumo. Entretanto, usa com cuidado uma linguagem que auxilia na composição da narrativa, e, desse modo, percebe-se um vocabulário muito bem escolhido para ser utilizado no lugar exato dentro do texto. Assim, Rubem Braga conseguiu esse título de cronista contador de histórias, pois: conta causos vivenciados através de suas experiências, conversa com o leitor usando a primeira pessoa e preserva a oralidade na narrativa. Esses são pontos fundamentais da arte de narrar desse cronista contador, capaz de transmitir as experiências vividas no interior, na cidade grande e em várias outras partes do mundo. Vejamos agora exemplos de crônicas que trazem essas três principais características citas acima. A crônica “Negócio de menino” é um exemplo da presença da oralidade na escrita, o narrador apresenta uma conversa entre ele e um menino. Este, que parece ser um grande conhecedor de passarinhos, propõe um negócio ao narrador, vejamos: Tem dez anos, é filho de um amigo, e nos encontramos na praia: — Papai me disse que o senhor tem muito passarinho... — Só tenho três. — Tem coleira? — Tenho um coleirinha. — Virado? — Virado. — Muito velho? 4 — Virado há um ano. — Canta? — Uma beleza. — Manso? — Canta no dedo. — O senhor vende? — Vendo. — Quanto? — Dez contos. Pausa. Depois volta: — Só tem coleira? — Tenho um melro e um curió. — É melro mesmo ou é vira? — É quase do tamanho de uma graúna. — Deixa coçar a cabeça? — Claro. Come na mão... — E o curió? — É muito bom curió. — Por quanto o senhor vende? — Dez contos. Pausa. — Deixa mais barato... — Para você, seis contos. — Com a gaiola? — Sem a gaiola. Pausa. — E o melro? — O melro eu não vendo. — Como se chama? — Brigitte. — Uai, é fêmea? — Não. Foi a empregada que botou nome. Quando ela fala com ele, ele se arrepia todo, fica todo despenteado, então ela diz que é Brigitte. Pausa. — O coleira o senhor também deixa por seis contos? — Deixo por oito contos. — Com a gaiola? — Sem a gaiola. Longa pausa. Hesitação. A irmãzinha o chama. E, antes de sair correndo, propõe, sem me encarar: — O senhor não me dá um passarinho de presente, não? (BRAGA, 2001, p. 43-44)2 Esta crônica apresenta algumas características que levaram o cronista a ser um excelente contador de histórias da modernidade. Primeiramente porque traz uma situação que parece ter sido vivenciada por ele, através das suas experiências (destaca-se aqui a paixão do cronista por passarinhos que também é a paixão da maioria dos meninos) e, além disso, percebe-se o olhar atento do cronista para o cotidiano, para as 2 Texto retirado do livro: BRAGA, Rubem. Melhores contos. São Paulo: Global, 2001. 5 coisas simples que acontecem no nosso dia-a-dia e que são captadas com detalhes pelo cronista contador de histórias e são transformadas numa boa história. Outro ponto é a presença da oralidade na narrativa, com a utilização da primeira pessoa e o diálogo entre as personagens da história. O humor, característica citada por Candido em seu texto e que trataremos mais adiante, também aparece nessa crônica. No final do texto o menino faz uma proposta inesperada para o cronista, depois de uma intensa negociação, ele acaba pedindo um passarinho de presente. Além desses, a conversa com o leitor usando a primeira pessoa é outra característica constante nas crônicas de Rubem Braga, isso é mais uma forma de apresentar a oralidade na escrita que o cronista faz muito bem. Na crônica “Coração de mãe” o narrador contará em primeira pessoa a história da desavença entre uma mãe, dona de pensão e suas duas filhas de olhos azuis que uma noite chegam de madrugada em casa um pouco “tontas”. Para explicar a situação narrada, ao longo da história o cronista conversa com o leitor para explicar a confusão: Ora, aconteceu que uma noite, ou, mais propriamente, uma madrugada, a mãe das moças de olhos azuis achou que aquilo era demais. Cá estou prevendo o leitor a perguntar que “aquilo” é esse, que era demais. Explicarei que Marina e Dorinha haviam chegado em casa um pouco tontas, em alegre e promíscua baratinha. (BRAGA, 2001, p. 46) Mais adiante, quando a confusão se intensifica, o narrador descreve com cuidado as palavras proferidas pela mãe das moças de olhos azuis: Outras palavras foram gritadas em tão puro e rude vernáculo que tentarei traduzi-las assim: - Passem já! Vão fazer isso assim assim, vão para o diabo que as carregue, suas isso assim assim!Não ponham mais os pés em minha casa! (o leitor inteligente substituirá as expressões “isso assim assim” pelos termos convenientes; a leitora inteligente não deve substituir coisa alguma para não ficar com vergonha). (BRAGA, 2001, p. 47) Além de falar com o leitor, ele aconselha como este deverá interpretar as palavras da furiosa mãe, assim usa o conselho que também é típico do narrador tradicional. O texto apresenta ainda partes com diálogos que são muito frequentes na crônica e servem para representar a oralidade na escrita através das falas das personagens. Então, a partir dessas duas crônicas de Rubem Braga confirmamos o que Antonio Candido diz em seu texto e o que Davi Arrigucci Jr. também confirma: Vistas como narração de um caso pessoal ou relacionado com o autor, sempre disposto a desfiar suas memórias capixabas atadas a instantâneos do mundo urbano, logo revelam seu parentesco próximo com o conto. Não diretamente com a forma literária moderna desse gênero que, como se sabe, vem do Romantismo e de Edgar Allan Poe, 6 mas com a forma simples do conto oral, ou mais propriamente com o causo popular do interior do Brasil, onde um saber feito de experiências se comunica de boca em boca por obra de narradores anônimos. (2001, p.7) 3. Um toque humorístico para o fato miúdo Por muitas vezes tratar de assuntos que são aparentemente leves, o tom humorístico apresenta-se com frequência nesse gênero. O nosso crítico irá descrever essa característica como o encontro mais puro da crônica consigo mesma: [...] foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e um toque humorístico, com seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma. (CANDIDO, 1984, p.7) Candido acredita que a união do fato miúdo com um toque de humor e poesia representa a descrição da crônica moderna. Pode-se afirmar que os textos do nosso mestre da crônica apresenta a união desses três, além disso, o humor é acompanhado pela ironia, que tem presença marcante nos seus textos. Nas crônicas citadas acima, “Negócio de menino” e “Coração de mãe”, percebe-se que o humor se faz presente, na primeira ele revela-se no final do texto e, na segunda, aparece em quase todos os momentos da história, acompanhado da ironia. Vejamos como ele inicia a crônica “Coração de mãe”: “O nome da rua eu não digo, e o das moças muito menos. Se me perguntarem se isso não aconteceu na Rua Correia Dutra com certas jovens que mais tarde vieram a brilhar no rádio eu darei uma desculpa qualquer e, com meu cinismo habitual, responderei que não” (BRAGA, 2001, p. 45). O cronista já inicia a crônica com uma pitada de humor e ironia, a fim de revelar as possíveis personagens da história. E continua: [...] Uma senhora que é dona de pensão no Catete pode aceitar depois indiferentemente um cargo de ministro da guerra da Turquia, restauradora das finanças do Reich ou poeta português. A pensão da mãe das moças era uma grande pensão, pululante de funcionários, casais, estudantes, senhoras bastante desquitadas. E não devo dizer mais nada: quanto menos se falar da mãe dos outros, melhor. (BRAGA, 2001, p. 45) Depois disso, fala sobre a confusão entre a mãe e as filhas, na qual estas arrumam as coisas para irem embora de casa, e saem para a rua chorando. É neste momento que aparecem vários homens “de bom coração” oferecendo apoio e moradia para as moças dos olhos azuis: “De todos os lados apareceram os mais bondosos 7 homens – funcionários, militantes, estudantes, médicos, bacharéis, jornalistas, comerciários, sanitaristas e atletas – fazendo os mais tocantes oferecimentos”. (BRAGA, 2001, p. 48). Foi então que, diante de todos os agrados daqueles homens querendo levá-las nos seus carros para as melhores hospedagens da cidade, a mãe sai e as coloca pra dentro de casa novamente, e assim o cronista termina a crônica com um toque de ironia, dizendo: “Eis o motivo pelo qual eu sempre digo: não há nada, neste mundo, como o coração de mãe”. (BRAGA, 2001, p. 49). Poderíamos citar aqui diversas crônicas de Rubem Braga que trazem o humor e a ironia como recurso para descrever diversas situações do cotidiano. Entretanto, citaremos aqui somente essa crônica para comprovar o que Candido fala em seu texto e observar que, a utilização do humor como característica marcante da crônica, reforça novamente o tom de leveza e simplicidade que lhe é atribuída. Isso não a torna superficial, pelo contrário, de acordo com Candido (1984, p.11): “Na verdade, aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas”. 4. Presença da crítica social Algumas vezes a crônica parece pretender só divertir, entreter ou deixar de lado qualquer problema. No entanto, o nosso crítico afirma que: “É curioso como ela mantêm o ar despreocupado, de quem está falando coisas sem maior consequência; e, no entanto, não apenas entra fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, mas pode levar longe a crítica social” (CANDIDO, 1984, p.9). Nas crônicas de Rubem Braga, percebe-se também essa preocupação que, em determinados momentos, aparece em meio a algum fato que pode até causar o riso no leitor, mas que com certa ironia e perspicácia no uso da linguagem apresenta uma crítica social. Vejamos a crônica “O jovem casal”, ela trata da história de um casal jovem e apaixonado que vive num quarto de uma pensão no Catete, e enfrentam todos os problemas econômicos e sociais possíveis: [...] Ano e meio casados, tanta aventura sonhada, e estavam tão mal naquele quarto de pensão do Catete, muito barulhento: "Lutaremos contra tudo" — havia dito — e ele pensou com amargor que estavam lutando apenas contra as baratas, as horríveis baratas do velho sobradão. Ela apenas com um gesto de susto e nojo se encolhia a um canto ou saía para o corredor — ele, com repugnância, ia matar o bicho; depois, com mais desgosto ainda, jogá-lo fora. E havia as pulgas; havia a falta de água, e quando havia água, a fila dos hóspedes no corredor, diante da porta do chuveiro. Havia as instalações que sempre cheiravam mal, o papel da parede amarelado e feio, as duas velhas gordas, pintadas, da mesinha ao lado, que lhe tiravam o apetite para a mesquinha comida da pensão. Toda a tristeza, toda a mediocridade, toda a feiura duma vida estreita onde o maugosto atroz e pretensioso da classe média se juntava à minuciosa ganância comercial — um ovo era "extraordinário", quando eles pediam dois ovos a dona da pensão olhava com raiva, estavam atrasados dias no pagamento. (BRAGA, 2001, p. 41) 8 Certo dia, esse jovem casal esperava o bonde que ou passava lotado ou insistia em demorar, no meio de um sol escaldante. Depois de ela ter que voltar na pensão porque havia esquecido a receita do médico, perdem mais um bonde, e este estava vazio. Então, um grande carro conversível para no sinal: [...] Lá dentro havia um casal, um sujeito meio calvo de ar importante na direção, uma mulherzinha muito pintada ao lado, sentiram o cheiro de seu perfume caro. A mulherzinha deu-lhes um vago olhar, examinou um pouco mais detidamente a moça, correndo os olhos da cabeça até os sapatos pobres — enquanto o senhor meio calvo dizia alguma coisa sobre anéis, e no momento do carro partir com um arranco macio e poderoso ouviram que a mulherzinha dizia: "se ele deixar aquele por quinze contos, eu fico." Quinze contos — isso entrou dolorosamente pelos ouvidos do rapaz, parece que foi bater, como um soco, em seu estômago mal alimentado — quinze contos, meses e meses de pensão! Então olhou a mulher e achou-a tão linda e triste com sua blusinha branca, tão frágil, tão jovem e tão querida, que sentiu os olhos arderem de vontade de chorar de humilhação por ser tão pobre; disse: "Viu aquela vaca dizendo que vai comprar um anel de quinze contos?" Vinha o bonde. A crônica descreve claramente a desigualdade social presente no nosso país, enquanto muitos sobrevivem com dificuldades, outros ostentam uma vida de luxo. O jovem mal alimentado sente-se humilhado em saber que a mulher do conversível gastará alguns contos num anel, dinheiro que daria para pagar meses do aluguel da pensão. O tom de revolta é descrito na fala final dele, que contrasta com seu jeito paciente e carinhoso mostrado ao longo do texto. Revelando aqui a sua preocupação social, a crônica nos mostra que pode falar das mais variados assuntos utilizando-se de diversos meios para conseguir o efeito que deseja. Estamos falando do hibridismo desse gênero, assunto que citaremos a seguir. Conclusão – um gênero híbrido A crônica é considerada um gênero híbrido, vimos até agora exemplos de textos que se estruturam como diálogos: “Negócio de menino”, outros que se aproximam de um texto humorístico ou da anedota: “Coração de mãe”, e os que se assemelham ao conto, ou seja, uma narrativa com certa estrutura de ficção como, por exemplo, “O jovem casal”. Ela ainda pode se aproximar de uma biografia lírica ou de uma exposição poética, entre outros que Antonio Candido não cita em sua análise. Esse gênero tem a capacidade de ser o que quiser, com o intuito de não se deixar naufragar apenas no fato do cotidiano. Em Rubem Braga, percebemos as fronteiras da instabilidade da crônica que, segundo Davi Arrigucci Jr.: “Buscando uma saída literária, as margens da sua terra firme são bastante imprecisas: ele pode estender a ambiguidade à linguagem e às fronteiras do gênero, sem perder o nível de estilo adequado às pequenas coisas de que trata” (1985, p.46). Por isso, conclui que: Às vezes a prosa da crônica se torna lírica, como se estivesse tomada pela subjetividade de um poeta do instantâneo, que, mesmo sem 9 abandonar o ar de conversa fiada, fosse capaz de tirar o difícil do simples, fazendo palavras banais alçarem voo. Outras vezes, a tendência é para a prosa de ficção, pela ênfase na objetivação de um mundo recriado imaginariamente: ela pode se confundir com o conto, a narrativa satírica a confissão. Outras ainda, como em tantos casos conhecidos, constitui um texto difícil de classificar: é... crônica. (1985, p.46) Desse modo, percebe-se que a crônica é um gênero especial, que com a sua simplicidade torna-se difícil de classificar e definir como detentora de determinadas características. Por isso, possui vários meios para o leitor se achegar até ela, “é que a crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral lírica, irônica, casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo” (CANDIDO, 1984, p.13). Assim, conclui-se que por meio da sua despretensão, há sempre muita riqueza para o leitor explorar na crônica e, “por serem leves e acessíveis talvez elas comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida de todo dia”. (CANDIDO, 1984, p.11). Referências bibliográficas ARRIGUCCI JR., Davi. Braga de novo por aqui. In: Melhores contos – Rubem Braga. São Paulo: Global, 2001. p. 5-27. ARRIGUCCI JR., Davi. Fragmentos sobre a crônica. Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, v. 46, p. 43-53, jan.-dez. 1985. BRAGA, Rubem. Melhores contos – Rubem Braga. São Paulo: Global, 2001. CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: ANDRADE, Carlos Drummond et al. Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1984. v. 5, Prefácio.

A vida ao rés do chão, por Antonio Cândido

A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.

“Graças a Deus”, seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica mais perto de nós. E para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura, como dizem os quatro cronistas deste livro na linda introdução ao primeiro volume da série. Por meio dos assuntos, da composição solta, do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão certa profundidade de significado e certo acabamento de forma, que de repente podem fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição. É o que o leitor verá em muitas que compõem este volume e os que o precederam na mesma série.

Mas, antes de chegar nelas, vamos pensar um pouco na própria crônica como gênero. Lembrar, por exemplo, que o fato de ficar tão perto do dia-a-dia age como quebra do monumental e da ênfase. Não que estas coisas sejam necessariamente ruins. Há estilos roncantes mas eficientes, e muita grandiloqüência consegue não só arrepiar, mas nos deixar honestamente admirados. O problema é que a magnitude do assunto e a pompa da linguagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo da verdade. A literatura corre com freqüência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a possibilidade de ver as coisas com retidão e pensar em conseqüência disto. Ora, a crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais diretas e também nas suas formas mais fantásticas, sobretudo porque quase sempre utiliza o humor.

Isto acontece porque não tem pretensões a durar, uma vez que é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita originalmente para o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar nesse veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em “ficar”, isto é, permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. Por isso mesmo, consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida de cada um; e, quando passa do jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava. Como no preceito evangélico, aquele que quer salvar-se acaba por perder-se; e aquele que não teme perder-se acaba por se salvar. No caso da crônica, talvez como prêmio por ser tão despretensiosa, insinuante e reveladora. E também porque ensina a conviver intimamente com a palavra, fazendo que ela não se dissolva de todo ou depressa demais no contexto, mas ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta na forma dos seus valores próprios.

Retificando o que ficou dito atrás, ela não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se tornou quotidiano, de tiragem relativamente grande e teor acessível, istó é, há pouco mais de um século e meio. No Brasil, ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi “folhetim”, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia – políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da seção “Ao correr da pena”, título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o “folhetim” foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.

Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixadas a outros tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a fórmula moderna, na qual entra um fato miúdo e um toque humorístico, com o seu quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da crônica consigo mesma.

No século passado, em José de Alencar, Francisco Otaviano e mesmo Machado de Assis, ainda se notava mais o corte de artigo leve. Em França Júnior já é nítida uma redução de escala nos temas, ligada ao incremento do humor e certo toque de gratuidade. Olavo Bilac, mestre da crônica leve e aliviada de peso, guarda um pouco do comentário antigo, mas amplia a dose poética, enquanto João do Rio se inclina para o humor e o sarcasmo, que contrabalançam um pouco a tara de esnobismo. Eles e muitos outros, maiores e menores, de Carmen Dolores a João Luso até nossos dias, contribuíram para fazer do gênero este produto sui generis do jornalismo literário brasileiro que ele é hoje.

A leitura de Bilac é instrutiva para mostrar como a crônica já estava brasileira, gratuita e meio lírico-humorística, a ponto de obrigá-lo a amainar a linguagem, descascá-la dos adjetivos mais retumbantes e das construções mais raras, como as que ocorrem na sua poesia e na prosa das suas conferências e discursos. Mas que encolhem nas crônicas. É que nelas parece não caber a sintaxe rebuscada, com inversões freqüentes; nem o vocabulário “opulento”, como se dizia, para significar que era variado, modulando sinônimos e palavras tão raras quanto bem-soantes. Num país como o Brasil, onde se costumava identificar a superioridade intelectual e literária com grandiloqüência e requinte gramatical, a crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que atingiram o ponto máximo nos nossos dias, como se pode ver nas deste livro.

O seu grande prestígio atual é um bom sintoma do progresso de busca da oralidade na escrita, isto é, na quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo. E isto é humanização da melhor. Quando vejo que os professores de agora fazem os alunos lerem cada vez mais as crônicas, fico pensando a importância deste agente de uma visão mais moderna na sua simplicidade reveladora e penetrante.

No meu tempo, entre as leituras preferidas para a sala de aula estavam os discursos: exórdio do sermão de são Pedro de Alcântara, de Monte Alverne; trechos do sermão da Sexagésima, de Vieira.; Oração da coroa, de Demóstenes, na tradução de Latino Coelho; Rui Barbosa sobre o jogo, o chicote, a missão dos moços. Um sinal favorável dos tempos é esta passagem do discurso, com a sua inflação verbal, para a crônica e seu tom menor de coisa familiar.

Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se consolidou no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número crescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e os seus mestres. Nos anos 30 se afirmaram Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e apareceu aquele que de certo modo seria ocronista, voltado de maneira praticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga.

Tanto em Drummond quanto nele, observamos um traço que não é raro na configuração da moderna crônica brasileira: a confluência, na maneira de escrever, da tradição, digamos clássica, com a prosa modernista. Esta fórmula foi bem manipulada em Minas (onde Rubem Braga viveu alguns anos decisivos); e dela se beneficiaram os que surgiram nos anos 40 e 50, como Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. É como se (imaginemos) a linguagem seca e límpida de Manuel Bandeira, coloquial e corretíssima, se misturasse com o ritmo falado da de Mário de Andrade, com uma pitada do arcaísmo programado pelos mineiros.

Neles todos, e nalguns outros que não estão aqui, como, por exemplo, Raquel de Queiroz, há um traço comum: deixando de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo, para virar uma conversa aparentemente fiada, foi como se a crônica pusesse de lado qualquer seriedade no tratamento de problemas. Mas observem bem as deste livro. É curioso como elas mantêm o ar despreocupado, de quem está falando de coisas sem maior conseqüência e, no entanto, não apenas entram fundo no significado dos atos e sentimentos do homem, mas podem levar longe a crítica social. Veja-se a extraordinária “Carta a uma senhora”, de Carlos Drummond de Andrade, onde a menininha que não possui nem vinte cruzeiros faz desfilar na imaginação os presentes que desejaria oferecer à sua mãe no Dia das Mães. É como se ela estivesse do lado de fora de uma vitrine imensa, onde se acham os objetos maravilhosos que a propaganda criadora de aspirações e necessidades transformou em bens ideais. Ela os enumera numa escrita que o cronista fez ao mesmo tempo belíssima e liricamente infantil. A impressão do leitor é de divertida simplicidade que se esgota em si mesma; mas por trás está todo o drama da sociedade chamada de consumo, muito mais iníqua num país como o nosso, cheio de pobres e miseráveis que ficam alijados da sua miragem sedutora e inacessível:

Mammy, o braço dói de escrever e tinha um liquidificador de 3 velocidades, sempre quis que a Sra. não tomasse trabalho de espremer laranja, a máquina de tricô faz 500 pontos, a Sra. sozinha faz muito mais. Um secador de cabelo para Mammy! gritei, com capacete plástico mas passei adiante, a Sra. não é desses luxos, e a poltrona anatômica me tentou, é um estouro, mas eu sabia que a Mãezinha nunca tem tempo de sentar. Mais o quê? Ah sim, o colár de pérolas acetinadas, caixa de talco de plástico perolado, par de meias, etc.

Veja-se depois, no limite do patético, firme e discretamente evitado pelo autor, a “Última crônica”, de Fernando Sabino: a família pobre que vai ao botequim celebrar o aniversário da menina, com um pedaço de bolo onde o pai finca e acende três velinhas trazidas no bolso. Não será a mesma criança que escreveu a mirífica do Dia das Mães? Diz o cronista:

Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo do seu disperso conetúdo humano, fruto da convivência que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante na esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo o meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim queria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

É quando  vê o casal com a filhinha e assiste ao ritual modesto. Mas as suas reflexões, a maestria com que constrói a cena e todo o ritmo emocionado sob a superfície do humor lírico – constituem ao mesmo tempo uma pequena e despretensiosa teoria da crônica, deixando ver o que sugeri, isto é, por baixo dela há sempre muita riqueza para o leitor explorar. Dizendo isto, não quero transformar em tratados essas peças leves. Ao contrário. Quero dizer que por serem leves e acessíveis talvez elas comuniquem, mais do que poderia fazer um estudo intencional, a visão humana do homem na sua vida de todo o dia.

É importante insistir no papel da simplicidade e da brevidade e graça próprias da crônica. Os professores incutem muitas vezes nos alunos (inclusive sem querer) uma falsa idéia de seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas, e que, conseqüentemente a leveza é superficial. Na verdade, aprende-se muito quando se diverte, e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar de modo persuasivo muita coisa que, divertindo, atrai, inspira e faz amadurecer a nossa visão das coisas.

Este livro está cheio de exemplos disso; é quase só isso, de começo a fim. Nele são raros os momentos de utilização da crônica como militância, isto é, participação decidida na realidade com o intuito de mudá-la, coisa que apenas perpassa em “Luto da família Silva”, de Rubem Braga, cujo assunto é a grande maioria dos homens que sua e pena para fazer funcionar a máquina da sociedade em benefício de uns poucos:

A gente da nossa família trabalha nas plantações de mate, nos pastos, nas fazendas, nas usinas, nas praias, nas fábricas, nas minas, nos balções, no mato, nas cozinhas, em todo o lugar onde se trabalha. Nossa família quebra pedras, faz telhas de barro, laça os bois, levanta os prédios, conduz os bondes, enrola o tapete do circo, enche os porões dos navios, conta dinheiro dos Bancos, faz os jormais, serve no Exército e na Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo.

Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória, João da Silva. Porque nossa família um dia há de subir na política…

Aliás, este é um bom exemplo de como a crônica pode dizer as coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente conversa fiada. Mas igualmente sérias são as descrições alegres da vida, o relato caprichoso dos fatos, o desenho de certos tipos humanos, o mero registro daquele inesperado que surge de repente e que Fernando Sabino procura captar, como explica na crônica citada mais acima. Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da imaginação, para voltarmos mais maduros à vida, conforme o sábio.

Para conseguir-se este efeito, o cronista usa diversos meios.  Neste livro há crônicas que são diálogos, como “Gravação”, de Carlos Drummond de Andrade, ou “Conversinha mineira” e “Albertina”, de Fernando Sabino. Outras parecem marchar rumo ao conto, à narrativa mais espraiada, com certa estrutura de ficção, como “Os Teixeiras”, de Rubem Braga; ou parecem anedotas desdobradas, como “A mulher do vizinho”, de Fernando Sabino. Nalguns casos o cronista se aproxima da exposição poética ou de certo tipo de biografia lírica, como vemos em Paulo Mendes Campos: “Ser brotinho” e “Maria José”, ambas admiráveis.

“Ser brotinho” é construída por enumeração, como certos poemas de Vinícius de Moraes. Parece uma divagação livre, uma cadeia de associações totalmente sem necessidade, que deveria resultar em simples acúmulo de palavras. Mas eis que o milagre da inspiração (isto é, o poder misterioso de fazer as palavras funcionarem de maneira diferente em combinações inesperadas) vai organizando um sistema expressivo tão perfeito, que no fim ele aparece como a própria necessidade das coisas:

Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.

O leitor fica perguntando se ser brotinho não é um pouco ser cronista – dando aos objetos e aos sentimentos um arranjo tão aparentemente desarranjado e na verdade tão expressivo, tirando significados do que parece insignificante. “[…] dar sentido de repente ao vácuo absoluto” é a magia da crônica.

Parece às vezes que escrever crônica obriga a uma certa comunhão, produz um ar de família que aproxima os autores num nível acima da sua singularidade e das suas diferenças. É que a crônica brasileira bem realizada participa de uma língua-geral lírica, irônica, casual, ora precisa, ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma espécie de monólogo comunicativo.

Nos autores desse livro percebemos tanto essa comunidade quanto o vinco da sua maneira pessoal. Apenas um deles é cronista puro, ou quase: Rubem Braga. Mas todos escrevem como se este fosse o seu veículo predileto, embora sintamos em cada um a presença nutritiva das suas outras atividades literárias: a precisão de Drummond, o movimento nervoso de Fernando Sabino, a larga onda lírica em Paulo Mendes Campos. Provindos de três gerações, eles se encontram aqui numa espécie de espetáculo fraterno, mostrando a força da crônica brasileira e sugerindo a sua capacidade de traçar o perfil do mundo e dos homens.

Bibliografia sobre a crônica, sugerida pelo curso Literatura e Sociedade, ministrado pelo Prof. Dr. Leonardo Affonso de Miranda Pereira

1 - Reflexões sobre a crônica 

ARRIGUCI JR., Davi, "Fragmentos sobre a crônica", Enigma e comentário. Ensaios sobre literatura e experiência, São Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 51-66. 
CANDIDO, Antonio, "A vida ao rés-do-chão", em A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, pp. 13-22.
COUTINHO, Afrânio, "Ensaio e crônica", A literatura no Brasil V.6, São Paulo. Global, 2003, pp. 117-143. 
DIMAS, Antonio, "Ambigüidade da crônica: literatura ou jornalismo?", em Revista Littera, n.12, Rio de Janeiro, set-dez 1974, pp.46-51.
DIMAS, Antônio, "A crônica", Tempos Eufóricos. Análise da revista Kosmos: 1904-1909, São Paulo, Ed. Ática, 1983, pp. 50-82.
NEVES, Margarida de Souza, "Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas", emA crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. Da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, pp. 75-92.
NEVES, Margarida de Souza, "História da crônica. Crônica da história", em Beatriz Resende(org.), Cronistas do Rio, Rio de Janeiro, Ed. José Olympio, 1995, pp. 15-31.
RONCARI, Luis, "A estampa da rotativa na crônica literária", em Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mario de Andrade, vol. 46, nº 1 - 4, jan. dez. 1985, pp. 9-16.
SÁ, Jorge de, A crônica, São Paulo, Ática, 1985 .

2 - Jornalismo e literatura no Brasil 

BARBOSA, Marialva, Os donos do Rio. Imprensa, poder e público, Rio de Janeiro, Vício de Leitura, 2000.
LACOMBE, Américo Jacobina, "Literatura e jornalismo", em Afrânio Coutinho. A literatura no Brasil V.6, São Paulo. Global, 2003, pp. 64-116. 
LIMA, Alceu Amoroso, O Jornalismo como gênero literário, São Paulo, EDUSP, 2003.
LUSTOSA, Isabel, O nascimento da imprensa brasileira, Rio de Janeiro, Zahar, 2003.
MEYER, Marlyse, "Voláteis e versáteis. De variedades e folhetins se fez a crônica", em A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. Da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, pp. 93-134.
MEYER, Marlyse, Folhetim, São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
NEEDELL, Jeffrey, Belle époque tropical, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
SODRÉ, Nelson Werneck, História da imprensa no Brasil, São Paulo, Martins Fontes, 1983.
SÜSSEKIND, Flora, Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo, ed. Companhia das Letras, 1987.

3 -Os primórdios da crônica: Alencar e Macedo

ALENCAR, José de, Ao correr da pena, João Roberto Faria (org.), São Paulo, Martins Fontes, 2004.
ALENCAR, José de, Melhores crônicas, São Paulo, Global, 2003.
FARIA, João Roberto, "Alencar: a semana em revista", em A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. Da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, pp. 301-316.
MACEDO, Joaquim Manuel de, Labirinto, Jefferson Cano (org.), Campinas, Mercado de Letras, 2004.
MACEDO, Joaquim Manuel de, Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, São Paulo, Planeta, 2004.
SOUZA, Silvia Cristina Martins de, "Ao correr da pena: uma leitura dos folhetins de José de Alencar", em Sidney Chalhoub e Leonardo Affonso de Miranda Pereira (orgs.), A História contada: capítulos de história social da literatura no Brasil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, pp. 123-143.

4 - Machado de Assis

BOSI, O teatro político nas crônicas de Machado de Assis, São Paulo, IEA/USP, Coleção Documentos, Série Literatura, 2004
BROCA, Brito, "A semana política de Machado", em Machado de Assis e a política, Rio de janeiro, INL, 1983, pp. 183-187.
BRAYNER, Sonia, "Machado de Assis: um cronista de quatro décadas", em A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. Da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, pp. 407-118.
PEREIRA, Leonardo A. M., "Por trás das máscaras", em O carnaval das letras. Literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX, Campinas, Ed. da UNICAMP, 2004.
GLEDSON, John, "Bons Dias!", Ficção e história, São Paulo, Paz e Terra, 2003.
GRANJA, Lucia, Machado de Assis, escritor em formação, Campinas, Mercado de Letras, 2000.
RAMOS, Ana Flavia Cernic, História e crônica: 'Balas de estalo' e as questões políticas e sociais de seu tempo, Campinas, IFCH-UNICAMP, 2001.
MACHADO DE ASSIS, Bons dias!, John Gledson (org.), São Paulo: HUCITEC, 1990.
MACHADO DE ASSIS, A semana, John Gledson (org.), São Paulo: HUCITEC, 1998.
MACHADO DE ASSIS, Balas de estalo , Heloísa Helena de Luca (org.), São Paulo, Annablume, 1998.
MACHADO DE ASSIS, Melhores crônicas, São Paulo, Global, 2003.
RESENDE, Beatriz, "Em caso de desespero, não trabalhem. A política nas crônicas de Machado de Assis", em A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. Da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, pp. 419-435.

5 - João do Rio

ANTELO, Raul, "As rugas de João do Rio", em Boletim Bibliográfico da Biblioteca Mario de Andrade, vol. 46, nº 1 - 4, jan. dez. 1985, pp. 91-105.
BASTOS, Gláucia Soares, "Pall-Mall Rio", em A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. Da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, pp. 225-233.
BROCA, Brito, "João do Rio e a crônica política", em Naturalistas, parnasianos e decadistas, Campinas, Editora da UNICAMP, 1991, pp. 242-248.
JOÃO DO RIO (Paulo Barreto), A alma encantadora das ruas, Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, 1995 (1908).
JOÃO DO RIO (Paulo Barreto), Cinematógrafo
JOÃO DO RIO (Paulo Barreto), Pall-Mall Rio - Inverno mundano de 1916, Rio de Janeiro, Villas Boas, 1917.
JOÃO DO RIO (Paulo Barreto), Crônicas efêmeras, Níobe Abreu Peixoto (org.), São Paulo, Ateliê Editorial, 2001.
LEVIN, Orna Messer, Figurações do Dândi. Estudo sobre a obra de João do Rio, Campinas, Ed. Da UNICAMP. 1996.
JOÃO DO RIO (Paulo Barreto), Um dândi na Cafelândia, Nelson Schapochnik (org.), São Paulo, Boitempo, 2004.
PRADO, Antonio Arnoni, "Nota sobre as reportagens de João do Rio", em Trincheira, palco e letras, São Paulo, Cosac & Naify, 2004, pp. 59-63.

6 - Lima Barreto

BOTELHO, Denílson, A pátria que quisera ter era um mito. O Rio de Janeiro e a militância literária de Lima Barreto, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 2002.
LIMA BARRETO, A . H., Toda crônica, Beatriz Resende e Rachel Valença (orgs.), Rio de Janeiro, Agir, 2005.
PRADO, Antonio Arnoni, Lima Barreto. O crítico e a crise, Rio de Janeiro, Martins Fontes, 1989.
RESENDE, Beatriz, Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos, Rio de Janeiro: Editora da UFRJ; Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.
SILVA, Raphael F. Moreira da, A moléstia da cor. A construção da identidade social de Lima Barreto (1881-1920). Dissertação de mestrado em História, Unicamp, 2002.
VASCONCELLOS, Eliane, "Lima Barreto: misógino ou feminista? Uma leitura de suas crônicas", em A crônica. O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas/ Rio de Janeiro: Ed. Da Unicamp/ Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, pp.255-270.

7 -Coelho Netto

COELHO NETTO, H.M., A bico da pena, Porto: Livraria Chardron, 1919
COELHO NETTO, H.M.,O meu dia, Porto: Chardron, 1922
COELHO NETTO, H.M., Às quintas, Porto: Chardron, 1924
COELHO NETTO, H.M., Bazar, Porto: Chardron, 1928.
COELHO NETTO, H.M., Bilhetes postais, Ana Carolina Feracin (org.), Campinas, Mercado de Letras, 2002. 
COELHO NETTO, H.M, Firmo, o vaqueiro e algumas crônicas, São Paulo, Barcarolla, 2004.
DANIEL, Mary L., "Coelho Netto revisitado", Luso-brazilian Review, vol. 30, no. 1, Summer 1993, pp. 175-180.
LIMA, Hermann, "Coelho Netto: as duas faces do espelho", in Coelho Netto, Obra seleta, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1958
LOPES, Marcos Aparecido, No purgatório da crítica. Coelho Netto e o seu lugar na história da literatura brasileira, Dissertação de mestrado em Teoria Literária, IEL/UNICAMP, 1997.

8 - Crônicas em série

Bastos Tigre, Instantâneos do Rio Antigo, Marcelo Balaban (org.), Campinas, Mercado de Letras, 2003.
Benjamim Costallat, Mistérios do Rio, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1995.
Carlos de Laet, Crônicas, Homero Senna (org.), Rio de janeiro, ABL, 2000.
Carmem Dolores, Crônicas - 1905-1910, Eliane Vasconcelos (org.), Rio de Janeiro, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998. 
Guilherme de Almeida, Pela cidade, São Paulo, Martins Fontes, 2004.
Mário de Andrade, Táxi e crônicas no Diário Nacional, São Paulo, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia/ Duas cidades, 1976.
Martins Penna, Folhetins: a semana lírica, Rio de janeiro, INL, 1965.
Olavo Bilac, Vossa Insolência, Antonio Dimas (org.), São Paulo: Cia.das Letras, 1996.
Orestes Barbosa, Bambambã, Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, 1993.
Raul Pompéia, Obras, volumes 6, 7 e 8 (crônicas), Afrânio Coutinho (org.), Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 1982.

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