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No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

 

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

 

Carlos Drummond de Andrade
Alguma Poesia, 1930

O mito de Sísifo, Grécia Antiga: Egina é raptada por Zeus. O pai de Egina, o deus Asopo, ao procurá-la, encontrou-se com Sísifo, um camponês esperto, que dedurou Zeus. Este vingou-se de Sísifo e ordenou que Hades o levasse ao Tártaro (mundo subterrâneo onde viviam as almas condenadas). Sísifo pediu então a sua esposa, Mérope, que não o enterrasse. Com isso, já no Tártaro, ele persuadiu Perséfone a deixar-lhe voltar à vida para organizar seu sepultamento e se vingar dos negligentes que não o fizeram. Ela o deixou ir por três dias, mas ele quebrou, claro, sua promessa, até que Hermes foi indicado a trazê-lo à força novamente.

Sísifo, então, recebeu uma punição exemplar: rolar diariamente uma pedra montanha acima até o topo. Ao chegar ao topo, o peso e o cansaço promovidos pela fadiga fariam a pedra rolar novamente até o chão e no outro dia ele deveria começar tudo novamente e assim para todo o sempre. Essa punição era um modo de envergonhar Sísifo por sua esperteza e habilidade usadas para tramar contra os deuses.

No século XX, um autor do movimento conhecido como “existencialismo”, Albert Camus, retomou o mito para explicar a condição humana. Explicava Camus que a vida dos homens era tal como o mito de Sísifo: seguir uma rotina diária, sem sentido próprio, determinada por instâncias como a religião e o sistema capitalista de produção. No mundo administrado, levantamos de manhã, trabalhamos, comemos, reproduzimos, e tudo isso não faz o menor sentido, já que se refere a modos de pensar que se impõem ao indivíduo sem que ele participe da estruturação desse modo de vida, sem que ele o tenha escolhido. 

Portanto, o mito mostra que, seguindo as ideologias dominantes, seremos punidos com a mesmice. Fica o alerta para a compreensão sobre a liberdade e a responsabilidade humana com relação à sua vida, ao seu mundo e aos outros. (João Cabral)

Divina Comédia, de Dante Alighieri

Inferno - Canto I

No meio do caminho desta vida

me vi perdido numa selva escura,

solitário, sem sol e sem saída

 

Ah, como armar no ar uma figura

dessa selva selvagem, dura, forte,

que, só de eu a pensar, me desfigura?

 

É quase tão amargo como a morte;

mas para expor o bem que eu encontrei,

outros dados darei da minha sorte.

 

Não me recordo ao certo como entrei,

tomado de uma sonolência estranha,

quando a vera vereda abandonei.

 

Sei que cheguei ao pé de uma montanha,

lá onde aquele vale se extinguia,

que me deixara em solidão tamanha,

 

e vi que o ombro do monte aparecia

vestido já dos raios do planeta

que a toda gente pela estrada guia

 

Então a angústia se calou, secreta,

lá no lago do peito onde imergira

a noite que tomou minha alma inquieta;

 

e como o náufrago, depois que aspira

o ar, abraçado à areia, redivivo,    (redivivo: que voltou à vida)

vira-se ao mar e longamente mira,

 

o meu ânimo, ainda fugitivo,

voltou a contemplar aquele espaço

que nunca ultrapassou um homem vivo.

 

(Tradução de Augusto de Campos)

Guiado primeiro pelo pagão Virgílio e depois por Beatriz, o poeta – que se encontra numa “selva escura” após ter perdido o caminho certo – visita os círculos infernais e celestiais onde estão dezenas de personagens da história. 

A Divina Comédia (1304) é dividida em 3 partes, cada uma composta de 33 cantos (mais um canto introdutório, perfazendo 100), o inferno é composto de 9 círculos. Considerado um mestre da inovação, Dante usa todos os dialetos de seu tempo, tendo como base o toscano (que deu origem à língua italiana).

QUEM ESCREVEU

Dante (1265-1321) nasceu em Florença e teve ampla formação cultural e teológica. Ativo na vida pública, recusa a lógica do lucro da nascente burguesia. Monarquista e cristão, defende uma reciprocidade de funções entre Império e Igreja – ao imperador cabe o total poder secular; ao papa, o espiritual. Foi condenado ao exílio em 1302 com a vitória de seus inimigos políticos, apoiados pelo papado. É fora de Florença que ele compõe a Comédia. Morre pouco depois de concluir o Paraíso.

POR QUE MUDOU A HUMANIDADE

A obra de Dante funda a língua e a literatura italianas e está no centro do cânone da literatura ocidental, influenciando autores de todo o mundo até nossos dias, de T. S. Eliot a Carlos Drummond de Andrade. A viagem que empreende é uma alegoria do mundo terreno, ordenado com excepcional perfeição, como verdade universal, baseada na religião cristã e na ética. Nela, faz convergirem os aspectos sociais, filosóficos, religiosos, políticos e artísticos da Idade Média e do surgimento do humanismo, um dos pilares da Renascença.

Revista Superinteressante

 

NO MEIO DO CAMINHO

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma povoada de sonhos eu tinha...

E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.

Hoje segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac

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