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Um pouco mais de Literatura:

 

1

 

Os olhos no teto, a nudez dentro do quarto; róseo, azul ou violáceo, o quarto é inviolável; o quarto é individual, é um mundo, quarto catedral, onde, nos intervalos da angústia, se colhe, de um áspero caule, na palma da mão, a rosa branca do desespero, pois entre os objetos que o quarto consagra estão primeiro os objetos do corpo; eu estava deitado no assoalho do meu quarto, numa velha pensão interiorana, quando meu irmão chegou pra me levar de volta; minha mão, pouco antes dinâmica e em dura disciplina, percorria vagarosa a pele molhada do meu corpo, as pontas dos meus dedos tocavam cheias de veneno a penugem incipiente do meu peito ainda quente; minha cabeça rolava entorpecida enquanto meus cabelos se deslocavam em grossas ondas sobre a curva úmida da fronte; deitei uma das faces contra o chão, mas meus olhos pouco apreenderam, sequer perderam a imobilidade ante o vôo fugaz dos cílios; o ruído das batidas na porta vinha macio, aconchegava-se despojado de sentido, o floco de paina insinuava-se entre as curvas sinuosas da orelha onde por instantes adormecia; e o ruído se repetindo, sempre macio e manso, não me perturbava a doce embriaguez, nem minha sonolência, nem o disperso e esparso torvelinho sem acolhimento; meus olhos depois viram a maçaneta que girava, mas ela em movimento se esquecia na retina como um objeto sem vida, um som sem vibração, ou um sopro escuro no porão da memória; foram pancadas num momento que puseram em sobressalto e desespero as coisas letárgicas do meu quarto; num salto leve e silencioso, me pus de pé, me curvando pra pegar a toalha estendida no chão; apertei os olhos enquanto enxugava a mão, agitei em seguida a cabeça pra agitar meus olhos, apanhei a camisa jogada na cadeira, escondi na calça meu sexo roxo e obscuro, dei logo uns passos e abri uma das folhas me recuando atrás dela: era meu irmão mais velho que estava na porta; assim que ele entrou, ficamos de frente um para o outro, nossos olhos parados, era um espaço de terra seca que nos separava, tinha susto e espanto nesse pó, mas não era uma descoberta, nem sei o que era, e não nos dizíamos nada, até que ele estendeu os braços e fechou em silêncio as mãos fortes nos meus ombros e nós nos olhamos e num momento preciso nossas memórias nos assaltaram os olhos em atropelo, e eu vi de repente seus olhos se molharem, e foi então que ele me abraçou, e eu senti nos seus braços o peso dos braços encharcados da família inteira; voltamos a nos olhar e eu disse "não te esperava" foi o que eu disse confuso com o desajeito do que dizia e cheio de receio de me deixar escapar não importava com o que eu fosse lá dizer, mesmo assim eu repeti "não te esperava" foi isso o que eu disse mais uma vez e eu senti a força poderosa da família desabando sobre mim como um aguaceiro pesado enquanto ele dizia "nós te amamos muito, nós te amamos muito'^ era tudo o que ele dizia enquanto me abraçava mais uma vez; ainda confuso, aturdido, mostrei-lhe a cadeira do canto, mas ele nem se mexeu e tirando o lenço do bolso ele disse "abotoe a camisa, André".

 

Raduan Nassar, Lavoura Arcaica

 

Introdução ao livro: Entrelaçam-se o novelesco e o lírico, através de um narrador em primeira pessoa, André, o filho encarregado de revelar o avesso de sua própria imagem e, conseqüentemente, o avesso da imagem da família. Lavoura arcaica é sobretudo uma aventura com a linguagem: além de fundar a narrativa, a linguagem é também o instrumento que, com seu rigor, desorganiza um outro rigor, o das verdades pensadas como irremovíveis. Lançado em dezembro de 1975, Lavoura arcaica imediatamente foi considerado um clássico, "uma revelação, dessas que marcam a história da nossa prosa narrativa", segundo o professor e crítico Alfredo Bosi.

 

Raduan Nassar é paulista de Pindorama, onde passou a infância. Adolescente, veio com a família para São Paulo, onde cursou direito e filosofia na USP. Exerceu diversas atividades, estreando na literatura em 1975 com o romance Lavoura arcaica. Em 1978 publica a novela Um copo de cólera (escrita em 70). Em 1997 aparece Menina a caminho, reunindo contos dos anos 60 e 70. Raduan Nassar deixou de escrever logo depois de sua estréia na literatura.

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Beatriz

Chico Buarque

 

Olha
Será que ela é moça
Será que ela é triste
Será que é o contrário
Será que é pintura
O rosto da atriz

Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha
Será que ela é de louça
Será que é de éter
Será que é loucura
Será que é cenário
A casa da atriz
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz

 

Olha
Será que é uma estrela
Será que é mentira
Será que é comédia
Será que é divina
A vida da atriz
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida

 

Chico Buarque, Budapeste

 

“Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira. Certa manhã, ao deixar o metrô por engano numa estação azul igual à dela, com um nome semelhante à estação da casa dela, telefonei da rua e disse: aí estou chegando quase. Desconfiei na mesma hora que tinha falado besteira, porque a profes- sora me pediu para repetir a sentença. Aí estou che- gando quase... havia provavelmente algum problema com a palavra quase. Só que, em vez de apontar o erro, ela me fez repeti-lo, repeti-lo, repeti-lo, depois caiu numa gargalhada que me levou a bater o fone. Ao me ver à sua porta teve novo acesso, e quanto mais prendia o riso na boca, mais se sacudia de rir com o corpo inteiro. Disse enfim ter entendido que eu chegaria pouco a pouco, primeiro o nariz, depois uma orelha, depois um joelho, e a piada nem tinha essa graça toda. Tanto é verdade que em seguida Kriska ficou meio triste e, sem saber pedir desculpas, roçou com a ponta dos dedos meus lábios trêmulos. Hoje porém posso dizer que falo o húngaro com perfeição, ou quase.” (p.7)

 

“De qualquer modo naquele instante fechei o jogo, arregacei as mangas, pousei os dedos no teclado, zarpei de Hamburgo, adentrei a baía de Guanabara e preferi nem ouvir as fitas do alemão. Eu era um jovem louro e saudável quando adentrei a baía de Guanabara, errei pelas ruas do Rio de Janeiro e conheci Teresa, caí de amores pelo seu idioma, e após três meses embatucado, senti que tinha a história do alemão na ponta dos dedos. A escrita me saía espontânea, num ritmo que não era o meu, e foi na batata da perna de Teresa que escrevi as primeiras palavras na língua nativa” (p.38-9).

 

 

“Querida Kriska, perguntei, sabes que somente por ti noites a fio concebi o livro que ora se encerra? Não sei o que ela pensou, porque fechou os olhos, mas com a cabeça fez que sim. E a mulher amada, de quem eu já sorvera o leite, me deu de beber a água com que havia lavado sua blusa” (p.174).

 

Joana Francesa

Chico Buarque

Tu ris, tu mens trop (ris: ri; mens: mente)

Tu pleures, tu meurs trop
Tu as le tropique
Dans le sang et sur la peau
Geme de loucura e de torpor
Já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda

Mata-me de rir
Fala-me de amor
Songes et mensonges (songes: sonhos; mensonges: mentiras)
Sei de longe e sei de cor
Geme de prazer e de pavor
Já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda

Vem molhar meu colo
Vou te consolar
Vem, mulato mole
Dançar dans mes bras
Vem, moleque me dizer
Onde é que está
Ton soleil, ta braise (brasa)

Quem me enfeitiçou
O mar, marée, bateau (maré, barco)
Tu as le parfum
De la cachaça e de suor
Geme de preguiça e de calor
Já é madrugada
Acorda, acorda, acorda, acorda, acorda

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A ficção morte
Sebastião Uchoa Leite


Penso em meu pequeno fim 
Ouvirei zumbidos? 
Sugado pela zona de vácuo? 
Ou zero-corpo 
Polidimensional 
Subindo ao teto 
Espiando-me de cima 
Os outros em torno 
Vozes mentalmente exaladas 
Dizem ouvir-se um trinado 
Muito alto 
Sem zumbidos 
Mas aí adeus 
Morro de susto outra vez 
Dentro da morte 

 

Emily Dickinson

I heard a Fly buzz – when I died –
The Stillness in the Room
Was like the Stillness in the Air –
Between the Heaves of Storm –

The Eyes around – had wrung them dry –
And Breaths were gathering firm
For that last Onset – when the King
Be witnessed – in the Room –

I willed my Keepsakes – Signed away
What portions of me be
Assignable – and then it was
There interposed a Fly –

With Blue – uncertain stumbling Buzz –
Between the light – and me –
And then the Windows failed – and then
I could not see to see –

 

Antonin Artaud

Quem sou eu?

De onde venho?
Sou Antonin Artaud
e basta que eu o diga
Como só eu o sei dizer
e imediatamente
hão de ver meu corpo
atual,
voar em pedaços
e se juntar
sob dez mil aspectos
diversos.
Um novo corpo
no qual nunca mais
poderão esquecer.

Eu, Antonin Artaud, sou meu filho,
meu pai,
minha mãe,
e eu mesmo.
Eu represento Antonin Artaud!
Estou sempre
morto. Mas um vivo morto,
Um morto vivo.
Sou um morto

Sempre vivo.
A tragédia em cena já não me basta.
Quero transportá-la para minha vida.

Eu represento totalmente a minha vida.

Onde as pessoas procuram criar obras
de arte, eu pretendo mostrar o meu
espírito.
Não concebo uma obra de arte
dissociada da vida.

Este Artaud, mas, por falta do que fazer…

 

Eu, o senhor Antonin Artaud,
nascido em Marseille
no dia 4 de setembro de 1896,
eu sou Satã e eu sou Deus,
e pouco me importa a Virgem Maria.

 

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Este bilhete é só para dizer que comi as ameixas que estavam na geladeira e que provavelmente você estava guardando para o café da manhã.

Desculpe-me, elas estavam deliciosas, tão doces e tão frias.

 

William Carlos Williams

 

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Trechos de Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu:


PreIúdio

No entanto (até no-entanto dizia agora) estava ali e era assim que se via. Era dentro disso que precisava mover-se sob o risco de. Não sobreviver, por exemplo - e queria? Enumerava frases como é-assim-que-as-coisas-são ou que-se-há-de-fazer-que-se-há-de-fazer ou apenas éofinal-que-importa. E a cada dia ampliava-se na boca aquele gosto de morangos mofando, verde doentio guardado no fundo escuro de alguma gaveta.

Allegro Agitato

Pois o senhor está em excelente forma, a voz elegante do médico, têmporas grisalhas como um coadjuvante de filme americano, vestido de bege, tom sur tom dos sapatos polidos à gravata frouxa, na medida justa entre o desalinho e a descontração. Não há nada errado com o seu coração nem com o seu corpo, muito menos com o seu cérebro. Caro senhor. Acendeu outro cigarro, desses que você fuma o dobro para evitar a metade do veneno, mas não é no cérebro que acho que tenho o câncer, doutor, é na alma, e isso não aparece em check-up algum.

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CIÚMES

 

Tenho ciúmes deste cigarro que você fuma

Tão distraidamente.

 

Abril/68

Ana Cristina César

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O Cigarro
Francis Ponge


Retomemos logo a atmosfera a um tempo brumosa e seca, assanhada, onde o cigarro está sempre pousado, atravessado, desde que nela se cria.

Depois, sua pessoa: uma pequena tocha bem menos luminosa que perfumada, donde se destacam e desabam, num ritmo incessante, um cálculo de pequenas massas de cinzas.

Sua paixão, por fim: esse botão em brasa, descamando em películas prateadas, que formam, de imediato, um funil dos mais recentes em torno.

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Fragmentos - 5

Vladimir Maiakovski

 

Sei o pulso das palavras a sirene das palavras

Não as que se aplaudem do alto dos teatros

Mas as que arrancam caixões da treva e os põem a caminhar quadrúpedes de cedro

Às vezes as relegam inauditas inéditas

Mas a palavra galopa com a cilha tensa ressoa os séculos e os trens rastejam para lamber as mãos calosas da poesia

Sei o pulso das palavras parecem fumaça

Pétalas caídas sob o calcanhar da dança

Mas o homem com lábios alma carcaça.

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Milton Hatoum, Cinzas do Norte

Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares.

 

João Guimarães Rosa

 

Li a carta de Mundo num bar do beco das Cancelas, onde encontrei refúgio contra o rebuliço do centro do Rio e as discussões sobre o destino do país. uma carta sem data, escrita numa clínica de Copacabana, aos solavancos e com uma caligra- fia miúda e trêmula que revelava a dor do meu amigo.

“Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase um milagre... Sinto no corpo o suor da agonia”, é o que se lê pouco antes do fim. Na margem da última página, estas palavras: “meia-noite e pouco”.

 

Talvez tenha morrido naquela madrugada, mas eu não quis saber a data nem a hora: detalhes que não interessam. uns vinte anos depois, a história de Mundo me vem à memória com a for- ça de um fogo escondido pela infância e pela juventude. Ainda guardo seu caderno com desenhos e anotações, e os esboços de várias obras inacabadas, feitos no Brasil e na Europa, na vida à deriva a que se lançou sem medo, como se quisesse se rasgar por dentro e repetisse a cada minuto a frase que enviou para mim num cartão-postal de londres: “Ou a obediência estúpida, ou a revolta”.

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POEMINHA DO CONTRA
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!

 

Mario Quintana

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Manoel de Barros:

Escrever nem uma coisa

Nem outra —

A fim de dizer todas —

Ou, pelo menos, nenhumas.

 

Assim,

Ao poeta faz bem

Desexplicar —

 

Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.

 

Que a palavra parede não seja símbolo

de obstáculos à liberdade

nem de desejos reprimidos

nem de proibições na infância

etc. (essas coisas que acham os

reveladores de arcanos mentais)

Não.

Parede que me seduz é de tijolo, adobe

preposto ao abdômen de uma casa.

Eu tenho um gosto rasteiro de

ir por reentrâncias

baixar em rachaduras de paredes

por frinchas, por gretas — com lascívia de hera.

Sobre o tijolo ser um lábio cego.

Tal um verme que iluminasse.

 

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Pedro Kilkerry:
 

O Verme e a Estrela

Agora sabes que sou verme.
Agora, sei da tua luz.
Se não notei minha epiderme...
É, nunca estrela eu te supus
Mas, se cantar pudesse um verme,
Eu cantaria a tua luz!

E eras assim... Por que não deste
Um raio, brando, ao teu viver?
Não te lembrava. Azul-celeste
O céu, talvez, não pôde ser...
Mas, ora! enfim, por que não deste
Somente um raio ao teu viver?

Olho, examino-me a epiderme,
Olho e não vejo a tua luz!
Vamos que sou, talvez, um verme...
Estrela nunca eu te supus!
Olho, examino-me a epiderme...
Ceguei! ceguei da tua luz?

 

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Manoel de Barros:

 

Nascimento da palavra:

 

Teve a semente que atravessar panos podres, criames

de insetos, couros, gravetos, pedras, ossarais de

peixes, cacos de vidro etc. – antes de irromper.

 

Agora está aberto no meio do monturo um grelo pálido.

 

Não sabemos até onde os podres o ajudaram nessa

obstinação de ver o sol.

 

Ó absconsos ardores!  (absconso: obscuro)

É atro o canto com reentrâncias que sai das escórias (atro: negro)

de um ser.

 

Os nascidos de trapo têm mil encolhas...

 

P.S. – No achamento do chão também foram descobertas

as origens do vôo.

 

1-

O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase

coberto de limos –

Entram coaxos por ele dentro.

Crescem jacintos sobre palavras.

 

2-

Bernardo montou no quintal Oficina de Transfazer Natureza.

(Objetos fabricados na oficina, por exemplo:

Duas aranhas com olho de estame

Um beija flor de rodas vermelhas

Um imitador de auroras – usado pelos tordos.

Três peneiras para desenvolver moscas

E uma flauta para solos de garça).

 

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Poema só para Jaime Ovalle

 

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro

(Embora a manhã já estivesse avançada).

Chovia.

Chovia uma triste chuva de resignação.

Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.

Então me levantei,

Bebi o café que eu mesmo preparei,

Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...

- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

 

Manuel Bandeira

 

Jaime Ovalle aproximou-se do meio intelectual carioca e se tornou amigo íntimo de Villa-Lobos, Di Cavalcante, Sérgio Buarque de Holanda e Manuel Bandeira. Em meados da década de1930, com a ajuda do amigo Carlos Drumond de Andrade, foi nomeado pelo ministro Gustavo Capanema para um posto na Delegacia do Ministério da Fazenda, em Londres. Anos depois, nos Estados Unidos, conheceu a poeta Virgínia Peckan, por quem se apaixonou. No início dos anos 1950, casaram-se no Mosteiro de São Bento. Sua música mais famosa é "Azulão", em parceria com o poeta Manuel Bandeira, com quem também assinaria "Modinha", igualmente muito solicitada em concertos. Para a escritora e pesquisadora Elvia Bezerra, foi o amigo que melhor conheceu o cotidiano de Manuel Bandeira na Rua do Curvelo, em Santa Teresa. Era ele que acordava diariamente o poeta com o primeiro telefonema do dia, contando seus infindáveis casos amorosos. Após sua morte, Bandeira escreveu o poema "Ovalle" cujos versos dizem: "... Vi com prazer/ Que um dia afinal seremos vizinhos/ Conversaremos longamente/ De sepultura a sepultura/ No silêncio das madrugadas/ Quando o orvalho pingar sem ruído/ E o luar for uma coisa só".

 

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Rio de Janeiro , 1962 – Vinícius de Moraes

A última viagem de Jayme Ovalle

Ovalle não queria a Morte 
Mas era dele tão querida 
Que o amor da Morte foi mais forte 
Que o amor do Ovalle à vida. 

E foi assim que a Morte, um dia 
Levou-o em bela carruagem 
A viajar - ah, que alegria! 
Ovalle sempre adora viagem! 

Foram por montes e por vales 
E tanto a Morte se aprazia 
Que fosse o mundo só de Ovalles 
E nunca mais ninguém morria. 

A cada vez que a Morte, a sério 
Com cicerônica prestança 
Mostrava a Ovalle um cemitério 
Ele apontava uma criança. 

A Morte, em Londres e Paris 
Levou-o à forca e à guilhotina 
Porém em Roma, Ovalle quis 
Tomar a sua canjebrina. 

Mostrou-lhe a Morte as catacumbas 
E suas ósseas prateleiras 
Mas riu-se muito, tais zabumbas 
Fazia Ovalle nas caveiras. 

Mais tarde, Ovalle satisfeito 
Declara à Morte, ambos de porre: 
- Quero enterrar-me, que é um direito 
Inalienável de quem morre! 

Custou-lhe esforço sobre-humano 
Chegar à última morada 
De vez que a Morte, a todo pano 
Queria dar uma esticada. 

Diz o guardião do campo-santo 
Que, noite alta, ainda se ouvia 
À voz da Morte, um tanto ou quanto 
Que ria, ria, ria, ria...

Assim Vinicus de Moraes definiu o amigo Ovalle: "é o poeta em estado virgem. A mais bela crisálida de poesia que jamais existiu desde William Blake. É o mistério poético em toda a sua inocência, em toda a sua beleza natural. É vôo, é transcendência absoluta. É amor em estado de graça." (apud SABINO, Fernando, "Fragmentos de uma suíte ovalliana". Jornal do Brasil, 15.07.1974.)

 

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Paulo Leminski:

 

O que quer dizer

O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.

 

Razão de ser

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?

 

M. de memória

Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.

 

 

© 2014 por Lígia Winter. 

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