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Castro Alves - Trecho de “O Navio Negreiro”

 

E ri-se a orquestra, irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente 
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala, 
Ouvem-se gritos... o chicote estala. 
E voam mais e mais... 
Presa dos elos de uma só cadeia, 
A multidão faminta cambaleia 
E chora e dança ali!

Um de raiva delira, outro enlouquece... 
Outro, que de martírios embrutece, 
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra 
E após, fitando o céu que se desdobra 
Tão puro sobre o mar,

Diz do fumo entre os densos nevoeiros: 
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros! 
Fazei-os mais dançar!..."

 

  • A poesia social de Castro Alves, a última ficção citadina de Alencar já diziam muito, embora em termos românticos, de um Brasil em crise.

  • De fato, a partir da extinção do tráfico, em 1850, acelerara-se a decadência da economia açucareira; o deslocar-se do eixo de prestígio para o Sul e os anseios das classes médias urbanas compunham um quadro novo para a nação, propício ao fermento de ideias liberais, abolicionistas e republicanas. Até 1890 serão essas as teses esposadas pela inteligência nacional, cada vez mais permeável ao pensamento europeu que na época se constelava em torno da filosofia positiva e do evolucionismo. Comte, Taine, Spencer, Darwin foram os mestres de realistas e naturalistas e o seriam, ainda nos fins do século, de Euclides da Cunha, Graça Aranha, enfim, dos homens que viveram a luta contra as tradições e o espírito da monarquia.

 

Contradições?

 

  • O supremo cuidado estilístico, a vontade de criar um objeto novo, imune às pressões e aos atritos, originam-se e nutrem-se do mesmo fundo radicalmente pessimista que subjaz à ideologia do determinismo. O Realismo se tingirá de naturalismo sempre que fizer personagens e enredos submeterem-se ao destino cego das "leis naturais" que a ciência da época julgava ter codificado; ou se dirá parnasiano, na poesia, à medida que se esgotar no lavor do verso tecnicamente perfeito.

  • A moral cinzenta do fatalismo se destila na prosa de Aluísio Azevedo, de Raul Pompéia, de Adolfo Caminha, ou na poesia de Raimundo Correia. E, apesar do gênio de Machado, ela não será nos seus romances maduros menos opressora.

  • A coexistência de um clima de ideias liberais e uma arte existencialmente negativa pode parecer um paradoxo. Mas o contraste está apenas na superfície das palavras: a raiz comum dessas direções é a postura incômoda do intelectual em face da sociedade tal como esta se veio configurando a partir da Revolução Industrial. Agredindo na vida pública o status quo, ele é ainda um rebelde; mas, introjetando-o em sua consciência como lei natural e como seleção dos mais fortes, acaba depositário de desencantos e conformista. O apelo ao destino deve ser visto à luz dessa dialética de revolta e impotência a que tantas vezes se tem reduzido a condição do escritor no mundo contemporâneo.

 

 

Realistas franceses:

 

  • Flaubert: "Esforço-me por entrar no espartilho e seguir uma linha reta geométrica: nenhum lirismo, nada de reflexões, ausente a personalidade do autor"

  • Émile Zola: "Em Thérèse Raquin, eu quis estudar temperamentos e não caracteres. Ai está o livro todo. Escolhi personagens soberanamente dominadas pelos nervos e pelo sangue, desprovidas de livre arbítrio, arrastadas a cada ato de sua vida pelas fatalidades da própria carne. ( . . . ). Começa-se a com- preender ( espero-o ) que o meu objetivo foi acima de tudo um objetivo científico. Criadas minhas duas personagens, Thérèse e Laurent, dei-me com prazer a formular e a resolver certos problemas; assim, tentei explicar a estranha união que se pode produzir entre dois temperamentos diferentes e mostrei as perturbações profundas de uma natureza sangüinea em contato com uma natureza nervosa. ( . . . ) Fiz simplesmente em dois corpos vivos o trabalho analítico que os cirurgiões fazem em cadáveres"

  • Guy de Maupassant: "... se o romancista de ontem escolhia e narrava as crises da vida, os estados agudos da alma e do coração, o romancista de hoje escreve a história do coração, da alma e da inteligência no estado normal. (…) para extrair o ensinamento artístico que dela deseja tirar, isto é, a revelação do que é verdadeiramente o homem contemporâneo diante de seus olhos, ele deverá empregar somente fatos de uma verdade irrecusável e constante. ( Prefácio de Pierre et Jean).

  • As personagens e sua interação reduzem-se à factualidade a que a ciência reduz suas categorias, o romancista acaba recorrendo ao “tipo” e à “situação típica”: ambos, enquanto sínteses do normal, prestam-se a compor o romance que se deseja imune a tentações da fantasia romântica, com suas criaturas exóticas e enredos inverossímeis.

 

Sobre as citações:

 

  • O Realismo aprofunda a narração de costumes da primeira metade do século XIX (Stendhal, Balzac, Dickens, Hugo) e de todo o século XVIII (Diderot, Defoe, Jane Austen...). Nas obras desses escritores, exibiam-se dons de observação e de análise, razão pela qual não se deve separá-las completamente das obras dos realistas como Flaubert, Maupassant e Machado. Entretanto, é sempre válido dizer que as vicissitudes que pontuaram a ascensão da burguesia durante o século XIX foram rasgando os véus idealizantes que ainda envolviam a ficção romântica. Desnudam-se as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima; e buscam-se para ambas causas naturais (raça, clima, temperamento) ou culturais (meio, educação) que lhes reduzem de muito a área de liberdade. O escritor realista se sentirá no dever de descobrir a verdade de suas personagens, no sentido positivista de dissecar os móveis do seu comportamento.

 

O “típico” e o “anômalo”

 

  • A estética realista de Georg Lukács é dialética, entende o “típico” na sua relação entre a totalidade em que se insere o escritor e as figuras singulares que inventa e articula na elaboração da obra ficcional. Por isso, a procura do típico leva, às vêzes, o romancista ao caso e, daí, ao patológico. Há um resíduo romântico nessa análise do excepcional, do feio, do grotesco, por isso é lugar-comum apontar o romantismo latente em Zola, que sobreviveria nas cruezas intencionais do Surrealismo e do Expressionismo. Essa vontade de descrever situações, hábitos e seres anômalos tem um lastro na cultura ocidental que transcende as divisões da história literária. Trata-se de um fenômeno que só se compreende à luz de tensões mais gerais entre o inconsciente e o consciente no quadro da nossa civilização desde a ruptura que a Idade Moderna operou com modos de pensar mágicos ou sacros do Medieval europeu.

  • A repulsa misturada de fascínio que as culturas do Ocidente, a partir da Renascença, têm experimentado pelo anômalo não produziu sempre os mesmos frutos. O escritor romântico eleva a fealdade à altura da beleza excepcional (Victor Hugo) ; o naturalista julga "interessante" o patológico, porque prova a dependência do homem em relação à fatalidade das leis naturais. Quem não lembrará a atitude limite de Machado de Assis, dando à natureza um rosto de esfinge a perseguir o pobre Brás Cubas no seu delírio? Em termos de construção, houve descarnamento do processo expressivo, cortando-se as demasias romanescas de um Dickens e de um Balzac e considerando-se ponto de honra não intervir.

  • Essas distinções abrem caminho para a inteligência do valor humano e estético. Assim, certas personagens centrais da obra machadiana, embora possam, captar-se nas redes gerais dos "tipos" (a mocinha pobre e ambiciosa que era Capitu, por exemplo), não poderiam jamais enrijecer-se como figuras "médias", montadas sob esquemas a priori; o que se dá, no entanto, com tantas "personagens" da ficção naturalista.

 

 

Os narradores e o determinismo

 

  • O determinismo reflete-se na perspectiva em que se movem os narradores ao trabalhar as suas personagens. A pretensa neutralidade não chega ao ponto de ocultar o fato de que o autor carrega sempre de tons sombrios o destino das suas criaturas. Atente-se, nos romances desse período, para a galeria de seres distorcidos, como o mulato Raimundo, a negra Bertoleza, Pombinha, o "Coruja", de Aluísio Azevedo. Neles espia-se o avesso da tela romântica: Macedo e Alencar faziam passear as suas donzelas nas matas da Tijuca ou nos bailes da Côrte; Aluísio não sai das casas de pensão e dos cortiços. A adolescência, pura na pena de Macedo, conhecerá as angústias sexuais da puberdade que latejam no Ateneu, de Raul Pompéia, por exemplo.

  • Assim, do Romantismo ao Realismo, houve uma passagem do vago ao típico, do idealizante ao factual. Quanto à composição, os narradores realistas brasileiros também procuraram alcançar maior coerência no esquema dos episódios, que passaram a ser regidos por necessidades objetivas do ambiente ou da estrutura moral das personagens ( cf. Dom Casmurro ) .

 

 

O Fim do Realismo no Brasil

 

  • Nos fins do século XIX e nas primeiras décadas do nosso, começa a hipertrofiar-se o gosto de descrever por descrever, em prejuízo da seriedade que norteara o primeiro tempo do Realismo. Esse estilo irá corresponder ao maneirismo ultra-parnasiano da linguagem belle épogue. É contra essa rotina que reagirão Lima Barreto, o último dos realistas do período, e, naturalmente, os modernos de 1922.

 

 

O Ateneu, Raul Pompéia

 

No Ateneu, Raul Pompeia, ao captar ambientes e pessoas, não dispensa o expressionismo da imagem:

  • As mangueiras, intermináveis serpentes, insinuavam-se pelo chão.

  • [As crianças] seguindo em grupos atropelados, como carneiros para a matança.

  • Permitia, quando muito, que Rômulo a seguisse cabisbaixo e mudo, como um hipopótamo domesticado.

  • Ele gozava como um cartaz que experimentasse o entusiasmo de ser vermelho.

  • As aproximações são, em geral, violentas e, no caso das pessoas, depressivas. A norma é o caricato, revelando o quanto de traumático deve ter marcado as experiências que lhes ficavam subjacentes.

  • "Vais encontrar o mundo", disse-me meu pai à porta do Ateneu. "Coragem para a luta." E tudo o que segue sublinha a ruptura com a vida familiar, definida como ”aconchego placentário" e "estufa de carinho". O dado original da ruptura foi matriz de infelicidade para o adulto. Sérgio não perdoou à vida o ser lançado à indiferença cruel da escola, e à sociedade com os mais fortes. O seu único momento de liberdade virá tarde, quando Ema o acarinha, convalescente, isto é quando o sacrifício da vida social, competitiva e má, é posto de lado para não mais voltar. A cura de Sérgio se seguirá ao incêndio da escola, fecho do romance. O ato de incendiar o colégio é homólogo ao suicídio: um e outro significam uma recusa selvagem daquela vida adulta que começa no internato.

 

O Cortiço, Aluízio de Azevedo

 

  • Em O Cortiço, Aluísio de Azevedo desiste de montar um enredo em função de pessoas, e passa a ater-se à seqüência de descrições muito precisas em que cenas coletivas e tipos psicologicamente primários fazem do cortiço a personagem mais convincente do nosso romance naturalista. Existe o quadro: dele derivam as figuras. Assumindo uma perspectiva do alto, de narrador onisciente, ele fazia distinção entre a vida dos que já venceram, com João Romão, o senhor da pedreira e do cortiço, e a labuta dos humildes que se exaurem na própria sobrevivência. Para os primeiros, o trabalho é uma pena sem remissão, pois a fome de ganho não se sacia e o frenesi do lucro - "uma moléstia nervosa, uma loucura", como a que empolga Romão - arrasta às mais sórdidas privações, sem que um limite "natural" e "humano" venha dar ao cabo a desejada paz. Já nos pobres, na "gentalha", como os chama, o trabalho é o exercício de uma atividade cega, instintiva, não sendo raras as comparações com vermes ou com insetos, sempre que importa fixar o vaivém dos operários na pedreira ou das mulheres no cortiço. Os textos abaixo ilustram a obsessão do germinal, herdada do mestre francês Zola:

  • E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a fervilhar, a aescer um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no estêrco ( cap. I ).

  • As corridas até à venda reproduziam-se, transformando-se num verminar constante de formigueiro assanhado (Cap. III).

  • A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a "Machona", portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo ( Cap. III ).

  • A franzina Nenén escapa "como enguia" dos rapazes; Paula, a cabocla mandingueira, tem "dentes de cão"; a mulatinha Florinda, "olhos luxuriosos de macaca"; e no cavoqueiro português, o pescoço é de touro e os olhos humildes, "como os de um boi de carga".

  • A redução das criaturas ao nível animal cai dentro dos códigos anti-românticos de despersonalização; mas uma análise social a atribuiria ao sistema desumano de trabalho, que deforma os que vendem e ulcera os que compram. O naturalista acaba fatalmente es- tendendo a amargura da sua reflexão à própria fonte de todas as suas leis: a natureza humana afigura-se-lhe uma selva onde os fortes comem os fracos. Essa, a mola do Cortiço. Essa, a explicação das vilanias e torpezas que "naturalmente" devem povoar a existência da gente pobre. E essa também a causa do desfecho, que se quer trágico, mas é apenas teatral.

 

Decadência: Naturalismo Estilizado “art nouveau”

  • Alcançadas as metas políticas da Abolição e do novo regime, a maioria dos intelectuais cedo perdeu a garra crítica de um passado recente e imergiu na água morna de um estilo ornamental, arremêdo da belle épogue europeia e claro signo de uma decadência que se ignora. Dos fins do século à guerra de 1914-18, a corrente mestra de nossa literatura, a que vivia em torno da Academia, dos jornais, da boêmia carioca e da burocracia, admirou supremamente esse estilo floreal, réplica nas letras do "art nouveau" arquitetônico e decorativo que então exprimia as resistências do artesanato à segunda Revolução Industrial.

 

 

Parnasianismo

  • É na convergência de ideais anti-românticos, como a objetividade no trato dos temas e o culto da forma, que se situa a poética do Parnasianismo. O nome da escola vinha de Paris e remontava a antologias publicadas a partir de 1866, sob o título de Parnasse Contemporain, que incluíam poemas de Gautier, Banville e Lecomte de Lisle. Seus traços de relêvo: o gôsto da descrição nítida, concepções tradicionalistas sobre metro, ritmo e rima e, no fundo, o ideal de impessoalidade que partilhavam com os realistas do tempo.

  • Depois de Teófilo Dias, cujas Fanfarras, de 1882, podem chamar-se, de direito, o nosso primeiro livro parnasiano, a corrente terá mestres seguros em Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Olavo Bilac, Francisca Júlia. Renovada pelo forte lirismo de Vicente de Carvalho, ela perduraria tenazmente até o segundo decênio do século XX, mercê de uma geração a que se costuma dar o nome de neoparnasianos, nascidos todos, à exceção do último, depois de 1880: José Albano, Martins Fontes, Amadeu Amaral...

 

Vaso Chinês 

Estranho mimo aquele vaso! Vi-o,

Casualmente, uma vez, de um perfumado

Contador sobre o mármor luzidio,

Entre um leque e o começo de um bordado.

Fino artista chinês, enamorado,

Nele pusera o coração doentio

Em rubras flores de um sutil lavrado,

Na tinta ardente, de um calor sombrio.

Mas, talvez por contraste à desventura,

Quem o sabe?... de um velho mandarim

Também lá estava a singular figura.

Que arte em pintá-la! A gente acaso vendo-a,

Sentia um não sei quê com aquele chim

De olhos cortados à feição de amêndoa.


Alberto de Oliveira

 

Profissão de Fé

(…)

Torce, aprimora, alteia, lima

A frase, e enfim,

No verso de ouro ensasta a rima,

Como um rubim.

Quero que a estrofe cristafina,

Dobrada ao jeito

Do ourives, saia da oficina

Sem um defeito.

Assim procedo. Minha pena

Segue esta norma,

Por te servir, Deusa serena,

Serena forma.

Olavo Bilac

 

OLAVO BILAC

 

  • Tal indiferença torna viável o trato de motivos diversos por puro exercício literário: o índio, de que Bilac é cantor tardio na esteira de Gonçalves Dias ("A Morte de Tapir"), a guerra, paixão curiosa nesse refinado homem de letras ("Guerreira") e enfim, copiosa temática greco-romana, haurida nos parnasianos franceses: "A Sesta de Nero", "O Incêndio de Roma", "O Sonho de Marco Antônio", "Lendo a Ilíada"…

  • Nos trinta e cinco sonetos de “Via Lactea”, o poeta encontra o seu motivo mais caro, o amor sensual, vivido numa fugaz exaltação. Vaza-o em ritmos neoclássicos, próximos de Bocage e, mais raramente, de Camões. Figuram na coleção algumas de suas peças mais felizes: "Como a floresta secular sombria", "Em mim também, que descuidado vistes”…

  • Quanto à sua poesia lírica, também sofre uma inflexão crepuscular, nos sonetos de “Tarde”, livro no qual o exaltado nacionalismo ("Pátria, latejo em ti”) sobreleva os ardores sensuais em declínio ("Sou como um vale, numa tarde fria”) e avultam as sombras do outono. Falando desse crepúsculo bilaqueano, observou Manuel Bandeira com o sal da ironia: "Desejaríamos menos clangor de metais nessa grave sinfonia da tarde". Aludia, de certo, ao fecho de "Sinfonia", o último sonêto do livro.

 

VILA RICA

 

  • Para se pensar esse soneto, vale lembrar que a Vila Rica do século XVIII, era a antiga denominação da cidade de Ouro Preto, cujo desenvolvimento deveu-se à mineração, principalmente, em torno das igrejas e confrarias. Essa corrida pelo ouro provocou um aumento populacional, inclusive, com a afluência de artistas e artesãos europeus contratados para construir monumentos, especialmente, igrejas que marcavam o súbito enriquecimento.

  • Na última estrofe do poema “Vila Rica” há uma analogia com o poema Marília de Dirceu, especialmente, de uma lira da segunda parte, na qual um pastor se dirige a Marília narrando como sua vida próspera e respeitosa fora interrompida por um acidente catastrófico e compara à situação anterior de abastança e felicidade com a atual, de privação e angústia. Ainda no “Soluça” do verso de Dirceu há a repetição do som “S” na última estrofe, lembrando um choro, sugerindo ao mesmo tempo os sofrimentos amorosos de Marília e Dirceu e o dos inconfidentes mineiros. Dentro do estilo simbolista, o destaque de palavras em maiúsculas é bastante freqüente e serve para indicar sua elevação à categoria absoluta, como no caso de “Soluça”.

  • Ainda nessa, o poeta evidencia que o povo todo (procissão espectral) está consternado com a perda, as pessoas seriam como fantasmas, andam atônitas cuja morte já lhes fora anunciada, o desemprego e tudo que este possa retirar-lhes. Restou sobre Ouro Preto a chuva não de ouro que existia na velha Vila Rica, mas de água que representa o ouro dos astros.

 

Vila Rica

 

O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;
Sangram, em laivos de ouro, as minas, que a ambição
Na torturada entranha abriu da terra nobre: 
E cada cicatriz brilha como um brasão.

O ângelus plange ao longe em doloroso dobre.
O último ouro do sol morre na cerração.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,
O crepúsculo cai como uma extrema unção. 

Agora, para além do cerro, o céu parece 
Feito de um ouro ancião que o tempo enegreceu...
A neblina, roçando o chão, cicia, em prece, 

Como uma procissão espectral que se move…
Dobra o sino… Soluça um verso de Dirceu…
Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.

 

Regionalismo e Modernismo

  • Na maré parnasiano-decadente do fim do século, a configuração polêmica e até certo ponto neo-romântica da vida rústica precede o nacionalismo exaltado dos modernistas. E se um Valdomiro e um Simões Lopes não puderam fazê-lo por meio de uma revolução formal em virtude da sua própria história intelectual, toda século XIX, o fato de terem mitizado a terra e o homem do interior já era um sintoma de que nem tudo tinha virado belle époque no Brasil de 1900. O projeto explícito dos regionalistas era a fidelidade ao meio a descrever: no que aprofundavam a linha realista estendendo-a para a compreensão de ambientes rurais ainda virgens para a nossa ficção.

  • Voltando as costas para as modas que as elites urbanas importavam, tantas vezes por mero esnobismo, puseram-se a pesquisar o folclore e a linguagem do interior, alcançando em alguns momentos, efeitos estéticos notáveis, que a cultura mais moderna e consciente de um Mário de Andrade e de um Guimarães Rosa não desdenharia. Chamá-los de "pré-modernistas" é, no entanto, arriscar-se. O melhor a se fazer é situar o problema quanto ao Modernismo.

  • O Modernismo, tomado na acepção estrita do movimento nascido em torno da Semana de 22, significou, em um primeiro tempo, a ruptura com a rotina acadêmica no pensamento e na linguagem, rotina que isolara as nossas letras das grandes tensões culturais do Ocidente desde os fins do século. Conhecendo e respirando a linguagem de Nietzsche, de Freud, de Bergson, de Rimbaud, de Marinetti, de Gide e de Proust, os jovens mais lúcidos de 22 fizeram a nossa vida mental dar o salto qualitativo que as novas estruturas sociais já estavam a exigir. Nesse abrir-se ao mundo contemporâneo, o Brasil reiterava a condição de país periférico, semicolonial, buscando normalmente na Europa, como o fizera em 1830 com o Romantismo ou em 1880 com o Realismo, as chaves de interpretação de sua própria realidade. Entretanto, a mesma corrente gue fôra aprender junto à arte ocidental modos novos de expressão refluiu para um conhecimento mais livre e direto do Brasil: o nacionalismo seria o outro lado da praxis modernista.

  • Pode-se hoje contestar nos homens de 22 certo exotismo estético, ou, na linha oposta,o seu amor às soluções folclóricas, neo-indianistas, neo-românticas… Mas o que não parece muito inteligente é condenar com arbítrio a-histórico o caráter dúplice que deveria fatalmente assumir a cultura entre provinciana e sofisticada dos anos de 20 em São Paulo. Na sua vontade de acertar o passo com a Europa, sem deixar de ser brasileiro, o intelectual modernista criou como pôde uma nova poesia, um novo romance, uma nova arte plástica, uma nova música, uma nova crítica; e a seu tempo se verá o quanto ainda lhe devemos.

  • Alguns dos nossos regionalistas precederam, em contexto diferente, o vivo interesse dos modernos pela realidade brasileira total, não apenas urbana. Hoje, quando já se incorporaram à nossa consciência literária o alto regionalismo crítico de Graciliano Ramos e a experiência estética universal do regionalista Guimarães Rosa, é mais fácil reconhecer o trabalho paciente e amoroso de um Valdomiro e de um Simões Lopes, voltados para a verdade humana da província; e tanto mais convence esse esforço quando nele cntrevemos, para além da fruição do pitoresco, a pesquisa de uma possível poética da oralidade.

 

© 2014 por Lígia Winter. 

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