PRÉ-MODERNISMO: PANORAMA HISTÓRICO
O avanço científico e tecnológico no início do século XX traz novas perspectivas à humanidade. As invenções contribuem para um clima de conforto e praticidade. Afinal, o telefone, a lâmpada elétrica, o automóvel e o telégrafo começam a influenciar, definitivamente, a vida das pessoas. Além dessas, a arte mostrou um inovado meio de comunicação, diversão e entretenimento: o cinema. Na transição entre o século XIX e XX, os valores éticos e sociais estavam passando por grandes mudanças. Os centros urbanos estavam se expandindo, a imigração de estrangeiros influenciava diretamente a dinâmica das cidades e as disparidades sociais se acentuavam.
É em meio a tanto progresso que a 1a Guerra Mundial eclode. Em meio a tantos acontecimentos, havia muito que se dizer, e por isso, a literatura é vasta nos primeiros anos do século XX. Logo, os estilos literários vão desde os poetas parnasianos e simbolistas (que ainda produziam) até os que se concentravam na política e nas peculiaridades de sua região.
Chamamos de Pré-Modernismo a essa fase de transição literária entre as escolas anteriores e a ruptura dos novos escritores com as mesmas.
Enquanto a Europa preparava-se para a guerra, o Brasil vivia a chamada política do “café-com-leite”, em que latifundiários e grandes agricultores dividiam o poder e economia do país. A miséria era grande, e as injustiças sociais eram recorrentes. No Nordeste, a situação social estava agitada: por conta do declínio da economia açucareira, a pobreza dos nordestinos havia piorado muito e, por isso, existiam diversos conflitos. Enquanto a classe dominante e consumista seguia a moda europeia, portanto, as agitações sociais aconteciam, principalmente no Nordeste.
Na Bahia, ocorre a famosa “Revolta de Canudos”, que inspirava a obra “Os Sertões” do escritor Euclides da Cunha. Na Revolta de Canudos, em 1897, o exército brasileiro massacrou os habitantes da comunidade nordestina. Canudos era um vilarejo não-oficial em que moravam habitantes miseráveis do sertão baiano, liderados por Antonio Conselheiro, um líder religioso. Esse evento chamou a atenção do Brasil inteiro para a realidade em que viviam os sertanejos. Esse choque de realidade influenciou diretamente diversos autores, com ênfase em Euclides da Cunha que, após o evento, viajou ao Nordeste para estudar o local. O resultado dos seus estudos foi o livro "Os Sertões", no qual ele analisa o homem, a terra e a luta.
Em 1910, a rebelião “Revolta da chibata” era liderada por João Cândido, o “Almirante Negro”, contra os maltratos vividos na Marinha.
Os principais escritores pré-modernistas são: Euclides da Cunha, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Graça Aranha e Augusto dos Anjos. Os marcos literários são, especialmente, o já citado “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, e “Canaã”, de Graça Aranha.
Mesmo sendo um movimento literário, as características dos autores pré-modernistas variavam muito. Havia duas características comuns entre eles, que eram o conservadorismo, que retomava aspectos naturalistas e realistas, e a renovação, principalmente temática. Também o regionalismo era muito forte. Todavia, o Pré-Modernismo não chega a ser considerado uma “escola literária” coesa.
Aos poucos, a República “café-com-leite” ficava em crise e em 1920 começam os burburinhos da Semana de Arte Moderna, que marcaria o início do Modernismo no Brasil.
AUTORES E SUAS OBRAS
Euclides da Cunha
(1866 – 1909)
Foi colaborador do Jornal “O Estado de S. Paulo” e por conta disso, em 1887 foi para Canudos cobrir a rebelião. Euclides da Cunha também foi professor do Colégio Pedro II. Morreu assassinado em 1909 pelo suposto amante da sua esposa.
Principal obra
- Os Sertões (1902)
Baixe a obra
http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=9&v ed=0CI8BEBYwCA&url=http%3A%2F%2Fwww.psbnacional.org.br%2Fbib %2Fb171.pdf&ei=afHlT7TxK8ag6QGW693fDg&usg=AFQjCNHb7YjK0v- c9UJW36EdZyQ85Y_zdQ
Baixe o filme completo: PRIMEIRA PARTE –
http://www.youtube.com/watch?v=H-0YkY8dhE0
SEGUNDA PARTE –
http://www.youtube.com/watch?v=vssNlNrFQq8
ANÁLISE DA OBRA
Os Sertões dá início ao que se chama de Pré-Modernismo na literatura brasileira, revelando, às vezes com crueldade e certo pessimismo, o contraste cultural nos dois "Brasis": o do sertão e o do litoral. Euclides da Cunha critica o nacionalismo exacerbado da população litorânea que, não enxergando a realidade daquela sociedade mestiça, produzida pelo deserto, agiu às cegas e ferozmente, cometendo um crime contra si própria; o que é o grande tema de Os Sertões. Em tom crítico, também mostra o que séculos de atraso e miséria, em uma região separada geográfica e temporalmente do resto do país, são capazes de produzir: um líder fanático e o delírio coletivo de uma população conformada.
Todos os importantes questionamentos e as grandes formulações sociológicas, antropológicas, históricas e políticas para compreender o Brasil, antes e depois da República, tiveram seu embrião nas páginas de Os Sertões.
A transição de valores tradicionais para modernos está na denúncia que faz da realidade brasileira, até então acostumada a retratar um Peri, uma Iracema, um gaúcho, ícones do nosso Romantismo. Evidencia, pela primeira vez em nossa literatura, os traços e condições reais do sertanejo, do jagunço; "a sub-raça" que habita o nordeste brasileiro; o herói determinista que resiste à tragédia de seu destino, disfarçando de resignação o desespero diante da fatalidade. Essa ruptura de visão de mundo gera também um rompimento no plano linguístico. A objetividade científica na abordagem de um problema leva o autor a buscar termos precisos e, nesta escolha, sua linguagem torna-se especializada e, por isso, às vezes difícil, mas que se justifica pelo objetivo de tornar exata a comunicação das idéias.
Considerada uma das obras-primas da literatura brasileira, Os Sertões, publicada em 1902, ano de sua primeira edição, cinco anos após a campanha de Canudos, cujo trágico desfecho Euclides da Cunha testemunhou como repórter de O Estado de São Paulo, apresenta não só um completo relato da Campanha de Canudos, que foi a luta sangrenta contra os fanáticos chefiados por Antônio Conselheiro, os quais ameaçavam a segurança das cidades e povoações vizinhas, mas apresenta ainda um admirável estudo da terra e do homem do sertão nordestino, das condições de vida do sertanejo, da sua resistência e capacidade, de acordo com a visão de Euclides da Cunha. Ele foi o único jornalista que atentou para a valentia dos jagunços.
Da primeira à última página, O Sertões é uma obra que incomoda. Ele foi escrito exatamente para isso. Para instigar, provocar a pesquisa e estimular a procura da verdade. É um livro contra o conformismo. É um livro de idéias e soluções, de questionamentos e proposições ousadas. Já é lugar comum dizer que algumas de suas conceituações científicas não resistiram à evolução. Contém os vícios ou distorções típicos da época.
É uma narrativa da insurreição de um grupo de fanáticos religiosos e não só descreve a sociedade mas também a geografia, geologia, e zoologia plana do sertão brasileiro. Com seu apurado estilo jornalístico-épico, traça um retrato dos elementos que compõem a guerra de Canudos: A Terra, O Homem e A Luta. A descrição minuciosa das condições geográficas e climáticas do sertão, de sua formação social: o sertanejo, o jagunço, o líder espiritual, e do conflito entre essa sociedade e a urbana, mostra-nos um Euclides cientificista, historicista e naturalista que rompe com o imperialismo literário da época e inicia uma análise científica em prol dos aspectos mais importantes da sociedade brasileira.
A primeira parte, A Terra, descreve o cenário em que se desenrolou a ação. Euclides da Cunha, num apanhado geral, estudou os caracteres geológicos e topográficos das regiões que estão entre o Rio Grande do Norte e o sul de Minas Gerais, de modo particular a bacia do rio São Francisco. Nos sertões do norte, discorre sobre a seca, das causas da mesma, dando relevo especial ao papel do homem como agente geológico da destruição, que ao praticar desde os tempos mais remotos a agricultura primitiva baseada em queimadas, arrasou as florestas. Os desertos, a erosão, o ciclo das secas terríveis vieram em seguida.
A segunda parte, O Homem, completa a descrição do cenário com a narrativa das origens de Canudos. Ali Euclides da Cunha estudou a gênese
do jagunço e, principalmente, a de seu líder carismático, Antonio Conselheiro. Falou de raças (índio, português, negro), e de sub-raças (que indica com o nome "mestiço"). Em O Homem o autor caracterizou o sertanejo como "Hércules- Quasímodo", usando antíteses e paradoxos (Hércules era um semi deus latino, encarnação de força e valentia; Quasímodo era sinônimo de monstrengo, de pessoa disforme, personagem de Nossa Senhora de Paris, romance de Victor Hugo). Preparando o ambiente para os episódios de Canudos, Euclides da Cunha expôs a genealogia de Antônio Conselheiro, suas pregações e a fixação dos sertanejos no arraial de Canudos.
A terceira parte, A Luta, é a mais importante, constituída da narrativa das quatro expedições do Exército enviadas para sufocar a rebelião de Canudos, que reunia "os bandidos do sertão": jagunços (das regiões do Rio São Francisco) e cangaceiros (denominação no Norte e Nordeste). Havia cerca de 20.000 habitantes no arraial, na maioria ex-trabalhadores dos latifúndios da região.
Início da luta
As autoridades de Juazeiro se recusam a mandar a madeira que Antônio Conselheiro adquirira para cobrir a igreja de Canudos; os jagunços, então, pretendiam tomar à força o que haviam comprado e pago. Avisado das intenções dos homens de Conselheiro, o governo do Estado manda que em Juazeiro se organize uma força que elimine o foco de banditismo.
A primeira expedição - Cem homens, comandados pelo tenente Pires Peneira, são surpreendidos e derrotados pelos jagunços no povoado de Uauá.
A segunda expedição - Quinhentos homens, comandados pelo major Febrônio de Brito e organizados em colunas maciças, são emboscados pelos jagunços em terrenos acidentados, no Morro do Cambaio e em Tabuleirinhos. Destacam-se os “bandidos” João Grande e Pajeú, este último considerado por Euclides verdadeiro gênio militar. Reduzidas a cem homens, as tropas do governo decidem voltar.
A terceira expedição - Mil e trezentos homens, comandados pelo coronel Moreira César, armados com canhões Krupp — recém-importados da Alemanha —, sem planos definidos, partiram em fevereiro de 1897, atacando de frente, do Morro da Favela, o arraial de Canudos. Os jagunços, protegidos pela irregularidade do relevo, buscavam o corpo-a-corpo e desorganizaram as tropas, que na retirada desastrosa deixaram para trás armas, munições, os canhões Krupp e o próprio general Moreira César, morto após ter sido ferido em combate.
A quarta expedição - Cinco mil homens, comandados pelos generais Artur Oscar, João da Silva Barbosa e Cláudio Savaget, são enviados pelo sul. As tropas dividem-se em duas colunas. A
primeira é cercada pelos jagunços no Morro da Favela e tem de se socorrer da segunda coluna que, vitoriosa em Cocorobó, havia mudado de estratégia, dividindo-se em pequenos batalhões. As duas colunas tentam um ataque maciço. Conseguem tomar boa parte do arraial, mas os soldados mal resistem à fome e à sede.
Em agosto de 1897, oito mil homens deslocam-se para a região, comandados pelo próprio ministro da Guerra, o marechal Carlos Bittencourt.
São cortadas as saídas de Canudos, o abastecimento de água é interrompido. Um tiro de canhão atinge a torre da Igreja. Estóicos, esperando a salvação eterna, os sertanejos não se renderam, e muitos foram degolados após o assalto final. Perpetrou-se dessa forma o crime de uma nacionalidade inteira, no dizer de Euclides da Cunha, que a tudo acompanhou do Morro de Uauá, de onde escrevia suas reportagens para o jornal A Província de São Paulo, hoje O Estado de São Paulo, mais tarde refundidas nessa obra monumental que são Os Sertões.
Leia trechos:
"O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. (...)
É o homem permanentemente fatigado."
"Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...
A caatinga mirrada e nua, apareceu repentinamente desabrochando numa florescência extravagantemente colorida no vermelho forte das divisas, no azul desmaiado dos dólmãs e nos brilhos vivos das chapas dos talins e estribos oscilantes...
Um pormenor doloroso completou essa encenação cruel: a uma banda avultava, empalado, erguido num galho seco, de angico, o corpo do coronel Tamarindo.
Era assombroso... Como um manequim terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado, braços e pernas pendidos, oscilando à feição do vento no galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito uma visão demoníaca."
“A linha férrea corre no lado oposto. Aquele liame do progresso passa, porém, por ali, inútil, sem atenuar sequer o caráter genuinamente roceiro do arraial. Salta-se do trem; transpõe-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas; e topa-se para logo, à fímbria da praça – o sertão... Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma à outra. O vaqueiro encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca o campião junto aos trilhos, em que passam, vertiginosamente, os patrícios do litoral, que o não conhecem.”
COMENTÁRIO
Nesse trecho, o narrador descreve o encontro entre duas culturas, o que ele chamaria de “raças” diferentes. O trilho do trem funciona como o corte, o “liame do progresso”, a separar duas civilizações incomunicáveis. Para o autor, essa idéia de que o sertanejo vivera completamente isolado durante muito tempo era fundamental para provar a força daquela raça, na qual se criara – com o passar dos anos – uma homogeneidade. Daí a célebre afirmação de Euclides: “O nordestino é antes de tudo um forte”.
Outras obras:
- Contrastes e Confrontos (1907)
- Peru versus Bolívia (1907)
- À Margem da História (1909 – obra póstuma)
Completas online:
1. » Os Sertões, de Euclides da Cuinha
2. » Ondas e Outros Poemas Esparsos, de Euclides da Cunha
3. » Contrastes e Confrontos, de Euclides da Cunha
4. » Um Paraíso Perdido, de Euclides da Cunha
LIMA BARRETO
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu em 1881 no Rio de Janeiro e faleceu em 1922. Foi jornalista, cronista, contista e escreveu romances. Suas obras possuem o relato realista da sociedade carioca do início do século. Seu estilo é simples e comunicativo. Foi valorizado pelos modernistas e hoje é considerado um dos maiores nomes da nossa Literatura. Levou uma vida triste e já no final de sua trajetória de vida se entregou à boemia e foi internado em um hospício.
Principal obra
- Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915)
ANÁLISE DA OBRA
Major Policarpo Quaresma era como era conhecido. Vivia no Rio de Janeiro e sua irmã morava junto com ele. Tratava-se de um homem extremamente patriota, fiel e adorador de do Brasil. Na vizinhança achavam graça dele, de como pontualmente chegava em casa sempre à mesma hora e como ficava horas em meio a livros estudando sem ser formado em faculdade alguma.
A última história que comentavam era a visita que ele recebia de Ricardo Coração dos Outros. Tratava-se de um músico, apaixonado pelo violão e que vinha ensinar a Quaresma a arte de tocar tal instrumento.
Tinha dentre as relações de sua casa o General, seu vizinho. Este tinha uma filha noiva que esperava ansiosamente pelo seu casamento, bastando apenas que o noivo concluísse sua faculdade de Odontologia. Tinha ainda um rico italiano e sua filha, de quem era padrinho.
Quaresma, nacionalista como era, estudando os nativos do país, acreditou que o mais certo fosse que todos na pátria falassem tupi. Assim aprendeu a língua e levou às autoridades o seu ideal! Como era de se esperar, tornou-se motivo de riso e escárnio. Mas o máximo de tudo foi quando irritado, sem sequer notar, escreveu um dos documentos públicos todo na língua dos nativos.
Depois disso restou a Quaresma ser levado ao hospício! Lá ficou por um bom período, e recebia visitas de sua afilhada e seu pai e de Coração dos Outros; sua irmã não ia muito bem para lhe fazer visitas.
Ao final de sua “estadia” no hospício, tomou um conselho que lhe foi dado. Comprou um pedaço de terra e foi viver de agricultura no interior. Seu forte sentimento nacionalista o enchia de esperanças, como a terra fértil do Brasil lhe seria bastante para viver e como uma reforma na agricultura do país poderia ocorrer...
Os projetos eram muitos, mas Quaresma teve que ver a verdade. Lucros pequenos, as demais terras todas mal tratadas e as malditas formigas.
Neste tempo, sua afilhada se casara com um egocêntrico médico e a filha do coronel, seu vizinho, sofria com o noivo, que fora para o interior e nunca mais mandara notícias. Foi então que uma rebelião nasceu. Quaresma prontamente se ofereceu a serviço da pátria e foi feito de fato major. Coração dos Outros também teve que lutar a serviço do país, no entanto fora quase que obrigado.
Por um longo tempo Quaresma ficou sem ver sua irmã, esta ficara nas terras dele no interior que, sem sua supervisão e amor, já se tornava como as demais terras abandonadas – o ajudante que tinha não sabia levar o trabalho de forma que rendesse.
Ao decorrer da rebelião, a filha do coronel, sempre presa na idéia do casamento e de ter sido abandonada, abalou-se profundamente e o desespero levou-a à loucura e posteriormente à morte. Nesse tempo Quaresma pôde ver como se iludira com o Brasil e acima de tudo com os seus governantes.
Seu último ato, já findada a rebelião, foi escrever uma carta às autoridades do país, em que declarou tudo o que pensava a respeito do Brasil, suas vantagens, suas chances de glória e seu governo que o afundava. A conseqüência foi ser levado preso, sem chances de defesa. Ricardo Coração dos Outros procurou ajuda, mas todos só afirmavam que o louco do Quaresma não tinha chances, e ainda a afilhada tentou salvá-lo. Por fim, concluíram que era mais digno ao Major Policarpo Quaresma aquele fim.
Leia trechos:
“Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!”
COMENTÁRIO
Esse trecho, que está no fim do romance, é o clímax da longa reflexão que Policarpo Quaresma tece sobre a própria trajetória. É interessante traçar um paralelo com outro defunto solitário, o machadiano Brás Cubas, que, no último capítulo do livro de suas memórias, afirma: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”. Em Lima Barreto, porém, essa reflexão perde algo da agudeza irônica de Machado e se deixa contaminar pela expressão de uma negatividade mais prolixa. A chave de ouro das reflexões de Policarpo é a última frase do trecho selecionado, “e sem sequer uma asneira!”, que surge como surpreendente exclamação no momento em que o texto resvalava no sentimentalismo autopiedoso. Fique-se bem entendido: morre sozinho e sem grandes feitos, mas lúcido, absolutamente lúcido.
“Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifrável da nossa própria natureza, fica amedrontado, sentindo que o gérmen daquilo está depositado em nós e que por qualquer cousa ele nos invade, nos toma, nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora compreensão inversa e absurda de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o seu mundo e para ele não há mais semelhantes: o que foi antes da loucura é outro muito outro do que ele vem a ser após”.
Leia trechos do último capítulo:
V
A Afilhada
(…)
Como lhe parecia ilógico com ele mesmo estar ali metido naquele estreito calabouço. Pois ele, o Quaresma plácido, o Quaresma de tão profundos pensamentos patrióticos, merecia aquele triste fim? De que maneira sorrateira o Destino o arrastara até ali, sem que ele pudesse pressentir o seu extravagante propósito, tão aparentemente sem relação com o resto da sua vida? Teria sido ele com os seus atos passados, com as suas ações encadeadas no tempo, que fizera com que aquele velho deus docilmente o trouxesse até à execução de tal desígnio? Ou teriam sido os fatos externos que venceram a ele, Quaresma, e fizeram-no escravo da sentença da onipotente divindade? Ele não sabia, e, quando teimava em pensar, as duas cousas se baralhavam, se emaranhavam e a conclusão certa e exata lhe fugia.
Não estava ali há muitas horas. Fora preso pela manhã, logo ao erguer-se da cama; e, pelo cálculo aproximado do tempo, pois estava sem relógio e mesmo se o tivesse não poderia consultá-lo à fraca luz da masmorra, imaginava podiam ser onze horas.
Por que estava preso? Ao certo não sabia; o oficial que o conduzira nada lhe quisera dizer; e, desde que saíra da ilha das Enxadas para a das Cobras, não trocara palavra com ninguém, não vira nenhum conhecido no caminho, nem o próprio Ricardo que lhe podia, com um olhar, com um gesto, trazer sossego às suas dúvidas. Entretanto, ele atribuía a prisão à carta que escrevera ao presidente, protestando contra a cena que presenciara na véspera.
Não se pudera conter. Aquela leva de desgraçados a sair assim, a desoras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo a todos os seus sentimentos; pusera diante dos seus olhos todos os seus princípios morais; desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade humana; e ele escrevera a carta com veemência, com paixão, indignado. Nada omitiu do seu pensamento; falou claro, franca e nitidamente.
Devia ser por isso que ele estava ali naquela masmorra, engaiolado, trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma fera, como um criminoso, sepultado na treva, sofrendo umidade, misturado com os seus detritos, quase sem comer... Como acabarei? Como acabarei? E a pergunta lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquela angústia provocava pensar. Não havia base para qualquer hipótese. Era de conduta tão irregular e incerta o Governo que tudo ele podia esperar: a liberdade ou a morte, mais esta que aquela.
O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sede de matar, para afirmar mais a vitória e senti-la bem na consciência cousa sua, própria, e altamente honrosa.
Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la muito, no intuito de contribuir para a sua felicidade e prosperidade. Gastara sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e, agora que estava na velhice, como ela o recompensava, como ela o premiava, como ela o condecorava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara –todo esse lado da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não experimentara.
Desde dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade saber o nome dos heróis do Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas cousas de tupi, do folk-lore, das suas tentativas agrícolas... Restava disso tudo em sua alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!
O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio; e levou-o à loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras não eram ferazes e ela não era fácil como diziam os livros. Outra decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não a viu combater como feras? Pois não a via matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções.
A pátria que quisera ter era um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física, nem a moral, nem a intelectual, nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato era a do Tenente Antonino, a do Doutor Campos, a do homem do Itamarati.
E, bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Pátria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia a menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma deusa cujo império se esvaía? Não sabia que essa idéia nascera da amplificação da crendice dos povos greco-romanos de que os ancestrais mortos continuariam a viver como sombras e era preciso alimentá-las para que eles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Coulanges... Lembrou-se de que essa noção nada é para a Menenanã, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa idéia como que fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas próprias ambições.
Reviu a história; viu as mutilações, os acréscimos em todos os países históricos e perguntou de si para si: como um homem que vivesse quatro séculos, sendo francês, inglês, italiano, alemão, podia sentir a Pátria?
Uma hora, para o francês, o Franco- Condado era terra dos seus avós, outra não era; num dado momento, a Alsácia não era, depois era e afinal não vinha a ser.
Nós mesmos não tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura, sentimos que haja lá manes dos nossos avós e por isso sofremos qualquer mágoa?
Certamente era uma noção sem consistência racional e precisava ser revista.
Mas, como é que ele tão sereno, tão lúcido, empregara sua vida, gastara o seu tempo, envelhecera atrás de tal quimera? Como é que não viu nitidamente a realidade, não a pressentiu logo e se deixou enganar por um falaz ídolo, absorver-se nele, dar-lhe em holocausto toda a sua existência? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma asneira!
Nada deixava que afirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada de saboroso.
Contudo, quem sabe se os outros que lhe seguissem as pegadas não seriam mais felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se fizera comunicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo e substância?
E esse seguimento adiantaria alguma coisa? E essa continuidade traria enfim para a terra alguma felicidade? Há quantos anos vidas mais valiosas que a dele se vinham oferecendo, sacrificando e as cousas ficaram na mesma, a terra na mesma miséria, na mesma opressão, na mesma tristeza.
E ele se lembrava que há bem cem anos, ali, naquele mesmo lugar onde estava, talvez naquela mesma prisão, homens generosos e ilustres estiveram presos por quererem melhorar o estado de cousas de seu tempo. Talvez só tivessem pensado, mas sofreram pelo seu pensamento. Tinha havido vantagem? As condições gerais tinham melhorado?
Aparentemente sim; mas, bem examinado, não.
Aqueles homens, acusados de crime tão nefando em face da legislação da época, tinham levado dous anos a ser julgados; e ele, que não tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado: seria simplesmente executado!
Fora bom, fora generoso, fora honesto, fora virtuoso – ele que fora tudo isso, ia para a cova sem acompanhamento de um parente, de um amigo, de um camarada...
(…)
Olga falou aos contínuos, pedindo ser recebida pelo marechal. Foi inútil. A muito custo conseguiu falar a um secretário ou ajudante-de-ordens. Quando ela lhe disse a que vinha, a fisionomia terrosa do homem tornou-se de oca e sob as suas pálpebras correu um firme e rápido lampejo de espada:
– Quem, Quaresma? disse ele. Um traidor! Um bandido!
Depois, arrependeu-se da veemência, fez com certa delicadeza:
– Não é possível, minha senhora. O marechal não a atenderá.
Ela nem lhe esperou o fim da frase. Ergueu-se orgulhosamente, deu-lhe as costas e teve vergonha de ter ido pedir, de ter descido do seu orgulho e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu pedido. Com tal gente, era melhor tê-lo deixado morrer só e heroicamente num ilhéu qualquer, mas levando para o túmulo inteiramente intacto o seu orgulho, a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a mácula de um empenho que diminuísse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos seus algozes que eles tinham direito de matá-lo.
Saiu e andou. Olhou o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, e se lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribos selvagens, das quais um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil inimigos. Fora há quatro séculos. Olhou de novo o céu, os ares, as árvores de Santa Teresa, as casas, as igrejas: viu os bondes passarem; uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha, atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do campo... Tinha havido grande e inúmeras modificações. Que fora aquele parque? Talvez um charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na fisionomia da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ela; e seguiu serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.
Todos os Santos (Rio de Janeiro),
janeiro – março de 1911.
Outras Obras
- Recordações de Escrivão Isaías Caminha (1909)
- Numa e a Ninfa (1915)
- Clara dos Anjos (1948)
- Histórias e Sonhos (1956 – contos)
- Bagatelas (1923 – crônicas)
Completas Online:
1. » O Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto
2. » Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto
3. » O Homem que Sabia Javanês, de Lima Barreto
4. » O Cemitério dos Vivos, de Lima Barreto
BAIXE O FILME – http://www.youtube.com/watch?v=mSSTpFHl3J0
Monteiro Lobato
(1882 – 1948)
Obras principais:
- Reinações de Narizinho
- Idéias de Jeca Tatu
- Urupês
- Cidades Mortas
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O papel que Lobato exerceu na cultura nacional transcende de muito a sua inclusão entre os contistas regionalistas. Ele foi, antes de tudo, um intelectual participante que empunhou a bandeira do progresso social e mental de nossa gente. E esse pendor para a militância foi-se acentuando no decorrer da sua produção literária, de tal sorte que às primeiras obras narrativas (Urupês, Cidades Mortas, Negrinha) logo se seguiram livros de ficção científica à Orwell e à Huxley, de polêmica econômica e social, que desembocariam, por fim, na originalíssima fusão de fantasia e pedagogia que representa a sua literatura juvenil.
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Moralista e doutrinador, de acentuadas tendências para uma concepção pragmática do homem, Lobato assumiu posição ambivalente dentro do Pré-Modernismo. Na medida em que a cultura do imediato pós-guerra refletia o aprofundamento de um filão nacionalista, o criador do Jeca mantinha bravamente a vanguarda; com efeito, depois de Euclides e de Lima Barreto, ninguém melhor do que ele soube apontar as mazelas físicas, sociais e mentais do Brasil oligárquico e da I República, que se arrastava por trás de uma fachada acadêmica e parnasiana.
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Entretanto, essa mesma nota moralista e didática afastava-o do Modernismo de 22, ou ao menos das correntes irracionalistas que lhe permeavam a estética. Lobato sentiria a vida toda, em nome do bom senso e da razão (como se fôra um velho acadêmico), total repulsa pelos "ismos" que definiram as grandes aventuras e as grandes conquistas da arte novecentista: futurismo, cubismo, expressionismo, surrealismo, abstracionismo…
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A sua obra de narrador entronca-se na tradição pós-romântica: retalhos de costumes interioranos, muita intenção satírica, alguma piedade e efeitos variamente sentimentais ou patéticos. Apesar de pontilhada de raro em raro por certas ousadias impressionistas, é uma prosa que não rompe, no fundo, nenhum molde convencional. O modêlo não atingido é Eça de Queirós, pela carga irônica e o gôsto da palavra pitoresca. Um resto de purismo (que ele tão bem satirizou em "O Colocador de Pronomes") levava-o a catar em Camilo vozes e torneios castiçamente lusos. Só esse fato estilístico já bastaria para denunciar a contradição moderno-antimoderno que dividiu o pensamento e a arte de Lobato.
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Sabia narrar com brilho um caso, uma anedota e sobretudo um desfecho de acaso ou violência. Daí decorrem seus riscos mais comuns: o ridículo arquitetado dos contrastes e o paroxismo patético não menos arquitetado dos finais imprevistos e sinistros. De resto, o ridículo e o patético, e às vêzes o ridículo patético, são quase os únicos efeitos em função dos quais se articulam suas histórias.
Reinações de Narizinho - Monteiro Lobato
Em 1921, Monteiro Lobato, através de sua editora, introduziu no mercado de livros didáticos brasileiros um produto totalmente diferente: o Narizinho Arrebitado, “segundo livro de leitura para uso das escolas primárias.” O imediato sucesso da obra levou o autor a prolongar as aventuras de seus personagens em muitos outros livros, agora não mais didáticos, girando todos ao redor do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Posteriormente vários destes livros foram reunidos em um volume: As Reinações de Narizinho. Assim, a forma atual desta primeira obra infantil de Lobato é fruto da colagem de fragmentos que, inicialmente, apresentavam autonomia narrativa. As partes que compõem o livro e que coincidem com as mini-histórias originais são: “Narizinho Arrebitado”, “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”, “Aventuras do Príncipe”, “ O Gato Félix”, “Cara de Coruja”, “ O Irmão de Pinóquio”, “O Circo de Escavalinhos”, “Pena de Papagaio” e “O Pó de Pirlimpimpim”.
Trecho:
Numa casinha branca, lá no Sítio do Picapau Amarelo, mora uma velha de mais de sessenta anos. Chama-se Dona Benta. Quem passa pela estrada e a vê na varanda, de cestinha de costura ao colo e óculos de ouro na ponta do nariz, segue seu caminho pensando:
-Que tristeza viver assim tão sozinha neste deserto...
Mas engana-se. Dona Benta é a mais feliz das vovós, porque vive em companhia da mais encantadora das netas - Lúcia, a menina do narizinho arrebitado, ou Narizinho como todos dizem. Narizinho tem sete anos, é morena como jambo, gosta muito de pipoca e já sabe fazer uns bolinhos de polvilho bem gostosos.
Nas casa ainda existem duas pessoas - tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo. Emília foi feita por tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão lá em cima que é ver uma bruxa. Apesar disso Narizinho gosta muito dela; não almoça nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa redinha entre dois pés de cadeira.
Além da boneca, o outro encanto da menina é o ribeirão que passa pelos fundos do pomar. Suas águas, muito apressadinhas e mexeriqueiras, correm por entre pedras negras de limo, que Lúcia chama as “tias Nastácias do rio”.
Todas as tardes Lúcia toma a boneca e vai passear à beira d’água, onde se senta na raiz dum velho ingazeiro para dar farelo de pão aos lambaris.
Não há peixe do rio que a não conheça; assim que ela aparece, todos acodem numa grande faminteza. Os mais miúdos chegam pertinho; os graúdos parece que desconfiam da boneca, pois ficam ressabiados, a espiar.
Polêmica:
A polêmica se intensificou quando, em maio de 2011, a Revista Bravo! publicou cartas atribuídas a Lobato, que continham conteúdo racista, inclusive demonstrando simpatia pela eugenia (“ciência” que ajudou a embasar o nazismo) e também ao Ku Klux Klan (organização racista extremista estadunidense). Entre os trechos mais polêmicos, Lobato escreveu: “Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos livres da peste da imprensa carioca - mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”. Em outro trecho, Lobato escreve: “País de mestiços, onde branco não tem força para organizar um Kux-Klan (sic) é país perdido para altos destinos”.
Novas denúncias: em setembro de 2012, outra obra do escritor foi alvo de denúncia. O livro de contos “Negrinha” também foi considerado racista e sexista pelos mesmos autores da ação contra o primeiro livro. Entre os trechos polêmicos do livro, está a apresentação da personagem Negrinha: “Negrinha era uma pobre órfã de 7 anos. Preta? Não, fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados. (...) O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não motivo”. Mais adiante, o autor escreve: “A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira - uma miséria, trinta quilos mal pesados...”.
Graça Aranha
(Maranhão 1868 – RJ 1931)
Era membro da Academia Brasileira de Letras, porém criticou seu conservadorismo e ficou ao lado da nova geração de artistas que surgiram com a Semana de Arte Moderna em 1922.
PRINCIPAL OBRA
Canaã (1902)-
Resumo da Obra CANAÃ
Milkau, alemão, recém-chegado, o a uma colônia de imigrantes europeus, no Espírito Santo, aluga um cavalo para ir do Queimado à cidade de Porto do Cachoeiro. Junto com ele vai o guia, um menino de 9 anos, filho de um alugador de animais, no Queimado. Finalmente, chega ao sobrado do comerciante alemão, Roberto Schultz, em Cachoeiro. Na parte inferior do edifício fica o armazém, onde é negociada toda sorte de produtos.
É apresentado a outro imigrante, von Lentz, filho de um general alemão. Milkau deseja arrematar um lote de terra para se estabelecer. Schultz apresenta-lhe o agrimensor, Sr.Felicíssimo, que está para ir ao Rio Doce fazer medições de terra. Milkau, desejando aí se estabelecer, decide se juntar ao agrimensor e convida o indeciso Lentz para acompanhá-lo.
Milkau vê na fusão das raças adiantadas com as selvagens, o rejuvenescimento da civilização. Enquanto acredita na humanidade, pensa encontrar no Brasil Canaã, "a terra prometida". Lentz só se ocupa da superioridade germânica, ficando enaltecido com o triunfo dos alemães sobre os mestiços. Para ele, a mistura gera uma cultura inferior, uma civilização de mulatos que serão sempre escravos e viverão em meio a lutas e revoltas.À noite, reúnem-se a Felicíssimo e ouvem de alguns homens da terra e dos trabalhadores alemães lendas, evocando o Reno e despertando saudades. Os planos dos dois imigrantes diferem; Milkau deseja manter seu pedaço de terra e anseia por uma justiça perfeita sem ganâncias ou lutas. Lentz está determinado a ampliar sua propriedade, ter muitos trabalhadores sob seu comando. Sonha com o domínio do branco sobre o mulato, numa confirmação de seu poder.
Após as medidas tomadas por Felicíssimo, Milkau pode levantar sua casa e Lentz deixa-se ficar, triste e angustiado, incapaz de abandonar o companheiro, dedicando-se às viagens e compras da casa. No trajeto, encontra-se sempre com um velho colono alemão taciturno, em companhia de seus cães ferozes, mas fiéis. Mais tarde, encontrará esse velho morto em casa, guardado pelos animais e devorado pelos urubus.
Acontece uma festa no sobrado de Jacob Müller. Milkau diz a Lentz que era isso o que buscava: uma vida simples em meio à gente simples, matando o ódio e esquecendo da dor.
Lentz vê em tudo aquilo uma existência vazia e inútil. Milkau conhece, nesse dia, no sobrado de Müller, uma colona, Maria Perutz, que não consegue mais esquecer o encontro com o rapaz. A história de Maria é triste e solitária. Ela e a mãe moravam com um velho, seu filho, a nora Ema e o neto, Moritz Kraus. Repentinamente, Kraus falece e a situação na casa de Maria se modifica. Ema e o esposo decidem separar a moça do filho, temendo uma aproximação amorosa. A família quer ver Moritz casado com a rica Emília Schenker e o enviam para longe de Jequitibá. O rapaz parte com certa alegria, deixando Maria desgostosa, pois os dois já eram amantes.Franz Kraus é procurado por um Oficial de Justiça que, desejando saber porque a morte do velho não foi notificada, passa-lhe um documento sobre a necessidade de arrolamento dos bens de Augusto Kraus. O grupo se instala na casa e passa a chamar os colonos, amedrontando-os com extorsões e violências. Após a visita, cobram de Franz Kraus a alta importância de quatrocentos mil réis, além de demonstrarem certo interesse em Maria, notadamente o procurador Brederodes. Kraus sente-se ultrajado e roubado. A vida de Maria por essa época piora. Maria aguarda desesperadamente o retorno de Moritz para lhe contar sobre o filho que espera. Os pais do rapaz não tardam perceber o que se passa. Passam o dia a cochichar, a tramar para se verem livres dela. Tratam-na com mais rigor, não lhe dão quase comida, dobram-lhe os trabalhos. Uma manhã, trêmula e exausta deixa cair um prato. Encolerizada, Ema grita para que ela abandone a casa.
Amedrontada, arruma uma trouxa e sai. Pede auxílio ao pastor, mas esse, dominado pela cunhada, docemente afasta Maria que parte para a vila em busca de abrigo.
Maria encontra uma estalagem, onde empenha a trouxa de roupa em troca de comida e abrigo. A dona do estabelecimento lhe dá dois dias para encontrar um emprego, mas a busca é em vão. Certo dia, na hora do almoço, Milkau reconhece Maria na estalagem. Ao saber de sua história, prontifica-se a ajudá-la, levando-a para a casa de uns colonos.Um dia trabalhando no cafezal, começa a sentir as dores do parto. Temendo retornar à casa, resiste até cair e, esvaindo-se em sangue, dá luz ao bebê. Alguns porcos, que estavam nas proximidades, correm para lambê-los, mordendo o bebê que falece. A filha dos patrões chega nesse instante e, sem nada perguntar, volta à casa, dizendo que Maria tinha matado o bebê e dado a criança aos porcos. Dois dias depois, Perutz estava presa na cadeia de Cachoeiro.
A população germânica, horrorizada com o crime de Maria, prepara-se para a vingança e o exemplo. Pede-lhes que deixem a punição da mãe assassina para os alemães. O procurador Brederodes, ignorado por Maria na época, insiste em puni-la para que aprenda a não ser tão orgulhosa. Chama todos os alemães de hipócritas e parte, deixando Shultz desmoralizado. Milkau fica sabendo do destino de Perutz e o encontro com ela em Cachoeiro choca-o. Volta a vê-la dias seguidos, passando a ser olhado com desprezo e desconfiança, pois, talvez, fosse o amante. Repelido pelos moradores, resigna-se com a condição de inimigo, permanecendo ao lado de Maria. Certa manhã, estando em companhia de Felicíssimo, Milkau encontra Maria, sendo levada por dois soldados para o tribunal. Em cada fase do julgamento, é apontada culpada. Milkau acompanha todas as sessões, chegando a ficar amigo do juiz Paulo Maciel. Este lhe diz que o final não será feliz, pois os depoimentos não deixam brecha para a inocência.
A avaliação não é das melhores. O juiz impossibilitado de fazer justiça por uma série de circunstâncias observa que a decadência ali existente é um "misto doloroso de selvageria dos povos que despontam para o mundo, e do esgotamento das raças acabadas. Há uma confusão geral".
Finalmente, numa noite, Milkau tira Maria da prisão e foge com ela, correndo pelos campos em busca de Canaã, "a terra prometida", onde os homens vivem em harmonia."
OUTRAS OBRAS:
- Malazarte (1911)
- A estética da vida (1920)
- O espírito moderno (1925)
- A viagem maravilhosa (1929)
Trechos:
Lentz
- Mas o que se tem feito é quase nada, e ainda assim é o esforço do europeu. O homem brasileiro não é um fator do progresso; é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores. Vê, a história...
Milkau
- Os seres são desiguais, mas, para chegarmos à unidade, cada um tem que contribuir com uma porção de amor. O mal está na força...
Trechos do artigo: A FORMAÇÃO DA “NAÇÃO” BRASILEIRA NO ROMANCE CANAÃ DE GRAÇA ARANHA - O DEBATE INTELECTUAL SOBRE A QUESTÃO “NACIONAL” NA PRIMEIRA REPÚBLICA COMO SUBSTRATO DE UMA FICÇÃO IDEOLÓGICA, de Georg Wink:
A oposição dos conceitos de “raça” e “meio” em Canaã
Ao contrário de outras obras literárias – no sentido mais amplo – que tratam da questão “racial” e climática no contexto da formação da “Nação”, a apresentação por Graça Aranha é rigidamente polifônica, aproveitando a contraposição dialética como meio de afirmação e desconstrução de argumentos ideológicos. Predominam, no romance, duas posições, que são confrontadas, em forma de um permanente diálogo: Por um lado, o racismo assumido do imigrante Lentz, que opina fielmente dentro dos parâmetros racistas da degeneração do ser humano pela, mistura de raças“ e da infecundidade do híbrido (“Que Macaco!” – exclama avistando o agrimensor brasileiro Felicíssimo). Os colonos alemães, com um certo prazer, enxerga como “gigantes alemães”, como uma presença de caráter “sólido repousado” (p. 70). As características “raciais” do brasileiro vê como exclusivamente negativas: “O homem brasileiro não é um fator de progresso: é um híbrido. E a civilização não se fará jamais nas raças inferiores” (p. 52). Sobre a mestiçagem, fenômeno evidente na realidade brasileira, opina: “Não acredito que da fusão com espécies radicalmente incapazes resulte uma raça sobre que se possa desenvolver a civilização. Será sempre uma cultura inferior, civilização de mulatos, eternos escravos em revoltas e quedas”(p. 53). Sobre o Brasil, então, só pode chegar à conclusão pessimista: “não é possível ter civilização neste país” (p. 52). Esta visão leva-o, porém, a uma conseqüência radicalmente social- darwinista: “Enquanto não se eliminar a raça que é o produto de tal fusão, a civilização será sempre um misterioso artifício (...). O problema social para o progresso de uma região como o Brasil está na substituição de uma raça híbrida, como a dos mulatos, por europeus” (p. 53). Esta “substituição” é justificada por uma medida de proteção da humanidade como tal, virando assunto internacional: “A imigração não é simplesmente para o futuro da região do País um caso de simples estética, é antes de tudo uma questão complexa, que interessa o futuro humano” (p. 53). Porém, percebe-se uma leve transformação da personagem Lentz, que não consegue ficar, p.ex., intocado pelo destino que leva Maria Perutz, detida e acusada de infanticida: “Pobre mulher! Como é triste a vida!”, e o autor acrescenta o óbvio: “Era o novo Lentz que falava” (p. 212). Pensando bem, a atuação de Lentz, apesar das convicções ideológicas que ele representa, no romance inteiro é de passividade e indecisão, mostrando a incapacidade de lidar com a nova realidade, de enquadrá-la nos seus conceitos pré-estabelecidos.
De outro lado, a posição do personagem Milkau que vê no Brasil o cumprimento de sua projeção de “paraíso”, no qual pretende renascer: “Sou um emigrado, e tenho a alma do repouso; este será o meu último movimento na terra...” (p. 44), “aqui está a paz” (p. 45). Este paraíso, como descrito por ele, tem traços fortes de uma utopia agrária (bem no sentido que a deu Tolstoi) e anárquica (“Não seria muito mais perfeito que a terra e as suas coisas fossem propriedade de todos, sem venda, sem posse?” p. 87). Ele contrapõe esta visão a um esgotamento cultural do velho continente, pois “a Europa tem a tradição que nos priva da liberdade de julgamento” (p. 46). Esta projeção de Milkau, porém, não está de acordo com a realidade que o circunda. Nela vê o fim de uma civilização que não conseguiu se manter no Novo Mundo. Milkau nota “no grande desleixo da casa abandonada, restos de maquinismos espalhados pelo chão (...), atestando ter havido ali uma instalação melhor, que o homem, caindo de prostração em prostração, perdendo todo o polido de uma civilização artificial, abandonara agora em sua decadência, para se servir dos aparelhos primitivos que se harmonizavam com a feição embrutecida do seu espírito” (p. 31) [o grifo é meu]. O autor, porém, não hesita em responsabilizar fatores sociais e históricos pela degeneração, falando pela boca de um „velho cafuzo“, morador da fazenda: “Governo tirou os escravos. Tudo debandou. Patrão se mudou com a família para Vitória” (p. 33). Decepciona, em seguida, até a idéia de liberdade em humildade, já despertada em Milkau, pois a abolição não tornou os escravos donos de terra: “Rancho é do marido de minha filha, terra é de seu coronel, arrendada por 10 mil-réis por ano” (p. 34). O velho morador relaciona o abandono e a falta de perspectiva à imigração: “Hoje em dia tudo aqui é de estrangeiro, Governo não faz nada para brasileiro, só pune por alemão.” E acrescenta, dirigindo-se a Milkau, que se sente incomodado com o prognóstico: “Daqui a um ano está podre de rico” (p. 34).
O quadro estabelecido é, então, de uma suspensão do Brasil, recentemente emancipado como “Nação”, mas sem ter desenvolvido uma dinâmica para reanimar “as forças de vida paralisadas” (p. 39). O ímpeto para tal transformação, segundo Milkau, viria do exterior, mas sem a substituição pela eliminação postulada por Lentz, e sim por uma utopia da fusão criadora: “As raças civilizam-se pela fusão; é no encontro das raças adiantadas com as raças virgens, selvagens, que está o repouso conservador, o milagre do rejuvenescimento da civilização. O papel dos povos superiores é o instintivo impulso do desdobramento da cultura” (p. 52). Desta forma, quatro anos antes do livro provocador América Latina: Males de Origem, de Manoel Bomfim, Graça Aranha levanta a idéia da civilização e do progresso pela fusão, como motivo de renovação. A fusão se daria através de dois movimentos. O primeiro, a fusão do elemento autóctono e dos escravos com os antigos brancos (i.e., os portugueses), este já concluído, tendo formado o mestiço que conseguiu realizar a Independência, a democracia e a República, mas agora esgotado. Equivale esta fusão ao conceito de mestiçagem de Sílvio Romero, sendo o mestiço apto para um futuro desenvolvimento: “não há raças capazes ou incapazes de civilização (...), no Brasil a cultura se fará regularmente sobre esse mesmo fundo de população mestiça, porque já houve o toque divino da fusão criadora (...)” (p. 203). Para levar o desenvolvimento adiante, precisaria, porém, de uma segunda fusão, pois “toda a trama da História é um processo de fusão: só as raças estacionadas, isto é, as que se não fundem com outras, sejam brancas ou negras, se mantêm no estado selvagem” (p. 203). Desta forma, a imigração produziria num processo de “arianização” os “novos brancos”, em Sílvio Romero denominado de “branqueamento”. Curiosamente, a visão de Graça Aranha da fusão como dinâmica e da reclusão como estagnação é oposta ao modelo de Euclides da Cunha. Ele sustenta a posição de Milkau através de uma terceira voz, a do jovem juíz municipal Maciel, obviamente o alter ego de Graça Aranha, que salienta a importância de “formar-se do conflito de nossas espécies humanas um tipo de mestiço, que se conformando melhor com a natureza, com o ambiente físico, e sendo a expressão das qualidades médias de todos, fosse o vencedor e eliminasse os extremos geradores” (p. 203). Vale observar, aqui, em primeiro lugar a adaptação da teoria darwinista da assimilação do ser de maneira otimizada ao ambiente, mais ainda, portanto, a formação de uma nova “raça” como “qualidade média”, superando os extremos. A unidade e homogeneidade da “raça”, na época pré-requisitos por excelência para a formação de uma “Nação”, são colocados como alvos principais, a mira para tal transformação é a comunidade alemã, descrita, no que concerne ao espírito coletivo, como representantes de um “pensamento único de cumprir o dever prático, de caminhar para a frente no conjunto harmônico de um corpo só” (p. 39), mas também fisicamente “com pulsos de ferro, torso hercúleo, (...) muito parecidos como um grupo de irmãos” (p. 70), sendo os colonos “confundidos numa só massa” (p. 73) e falando “fazendo coro” (p. 70) [os grifos são meus]. Compare-se esta apresentação – evidentemente forçada e fabulosa, mas justamente por causa disso de grande significado – com a avaliação triste do jovem juiz/Graça Aranha: “não há dois brasileiros iguais” (p. 199)!
Apesar da celebração da fusão de “raças” como mecanismo subjacente ao avanço da civilização, nesta colocação bem rara na época, o autor, constantemente, recorre aos esterótipos racistas, os lugares-comuns no seu tempo: “Milkau se compungia diante da tréfega e ossuda criança (...), rebento fanado de uma raça que se ia extinguindo na dor surda e inconsciente das espécies que nunca chegam a uma florescência superior, a uma plena expansão da individualidade” (p. 28). O motivo é aplicado à maioria dos camponeses brasileiros, todos apresentando traços de “a resignação dos esmagados” e de “eterno escravo” (p. 34). A estereotipação não é necessariamente negativa, como, p.ex., na caracterização do agrimensor Felicíssimo (nomen est omen) como um protótipo do “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, como encarnação da “espontaneidade da raça, riso de vida e bondade” (p. 69) e portador macunaimesco dos “instintos da sua nativa e tranqüila vadiagem” (p. 40) e na descrição do camponês maranhense Joca expondo sempre um “riso fácil e ingênuo” (p. 71). De qualquer forma, a “raça” continua sendo percebida como um código genético que determina as características psicológicas do indivíduo: “o rosto macilento se esclarecia com a grande doçura de uma longa resignação de raça” (p. 29). Surpreendentemente, desta maneira, o autor, quando fala como narrador onisciente, contradiz a desvinculação entre as noções de “raça” e civilização (ou cultura), que propaga através da fala de Milkau, de maneira até bem explícita e vanguardista: “Um dos erros dos intérpretes da História estáno preconceito aristocrático com que concebem a idéia de raça. Ninguém, porém, até hoje soube definir a raça e ainda menos como se distiguem umas das outras.” (p. 171).
No que concerne ao “meio”, a influência do critério naturalista de Buckle, sendo o privilégio do “meio” sobre os aspectos psicológicos, é forte em Graça Aranha. texto apresenta longos trechos sobre a força transformadora da natureza exuberante, exercida sobre os colonos recém chegados e que “ainda eram loiros” (p. 102), contrastando com os nativos: “Não havia (...) entre ele [Joca] e a terra um remoto convívio, perpetuado no sangue e transmitido de geração em geração?” (p. 71). O “meio” é representado, em primeiro lugar, pelos topoi “calor” e o “sol”, sendo que, nas visões paradigmáticas de Milkau e Lentz, este pode manifestar-se como fator meramente positivo (Milkau: “o esplendor do sol” p. 46) ou negativo (Lentz: “sol implacável” p. 46), resumindo a amistosidade e hostilidade, respetivamente, do Mundo dos trópicos. O último até reconhece a grandeza da natureza tropical, alega, porém, que “o espírito é esmagado pela estupenda majestade da Natureza”, reduzindo o ser humano no seu desdobramento espiritual e inteletual. O papel do meio é reforçado, além da recepção como teoria climática, pelo naturalismo de Graça Aranha, vendo nela uma manifestação cósmica, o “ruido incessante da vida” (p. 140), animando a natureza, deixando que “montanhas (...) enterram a cabeça nas nuvens” (p. 27) e que o rio Santa Maria desce no seu leito pedroso “mugindo de dor” (p. 27).
A presença forte da natureza tropical em Canaã, sendo ela uma formadora dos seres, sujeitos a sua inevitável e omnipresente influência ( “o calor”), foi interpretada como fenômeno precursor ao movimento modernista, afirmando a Brasilidade como uma expressão tropical, em emancipação à cultura lusitana ou européia (“nórdica”) em geral:
Canaã antecipa de certo modo a devoração cultural que o manifesto da Antropofagia consagraria como a estratégia básica do Brasil caraíba a que aspirava. (...) (A) recuperação, pelo brasileiro, de suas ‘raízes tropicais’, o que implicaria uma rejeição dos ‘princípios cristão-europeus’ que herdamos de Portugal.
Vejo, além disso, uma afinidade estreita com o conceito do “estilo tropical”, desenvolvido justamente nos anos 1890 por Araripe Jr., vendo, já naquela época, nesta expressão literária uma “obnubilação tropical” de Portugal, visto na Primeira República como a operação de emancipação de importância singular para atingir uma verdadeira autonomia cultural: “O naturalismo brasileiro é a luta entre o cientificismo desalentado do europeu e o lirismo nativo do americano pujante de vida, de amor, de sensualidade.” Este via no “meio” um fator muito mais influente do que na composição de “raças”, sendo que os trópicos regiam todos os indivíduos, negando, desta forma, a possibilidade de viabilizar a civilização pela imigração: “(...) a reação do meio físico, a influência catalítica da terra, as depressões e modificações do clima tropical, a solidariedade imposta pelas condições da vida crioula com a flora, com a fauna, com a meteorologia da nova região, são outras tantas influências que estão a invadir sorrateiramente estrangeiros e brasileiros,sem que estes disso se apercebam, certos, como estão, do triunfo das suas qualidades étnicas e da propulsão civilizadora de origem”. (p. 124)
Graça Aranha não o acompanha plenamente nesta argumentação. Vale lembrar, também, que – falando como narrador – novamente ameniza a eufórica visão do “meio” tropical como “graça” para os humanos, p.ex., quando faz uma observação significativa sobre a figura de Lentz, personificação do “nórdico” inatingível por quaisquer forças de assimilação tropicais, deixando este numa postura “bocejando de desalento” e com os olhos pairando “preguiçosamente sobre a paisagem” (p. 44). De repente, a suposta superioridade da personagem extrema, caracterizada, quando recém chegado pela “mobilidade da fisionomia” com “o fulgor de seus olhos dominando o rosto sem barba, cujas linhas eram acentuadas e fortes, e se projetavam de uma cabeça ampla, roliça como a de um patrício romano” (p. 38), após um tempo sob efeitos do “meio” brasileiro, assemelha-se até ao cafuzo mais degenerado, que “descansou [o olhar], cheio de preguiça e desalento, no rosto do viajante” (p. 33). A modificação pelo “meio”, aqui ainda sem carregar uma valorização explicitadamente negativa, chega a se tornar literalmente expressão de uma degeneração, quando Graça Aranha apresenta uma personagem que já sofreu durante gerações os efeitos do clima, o Coronel Afonso, que “parecia (...) atestando na alvura da tez a pureza da geração. A fisionomia era triste, como se ele tivesse consciência de que sobre si recaía o peso do descalabro da raça e da família (...). Mas, ainda assim, ele representava a figura humana, a mesma vida superior envolta na queda das coisas, arrastada na ruína geral” (p. 31). Mais uma vez, como no caso da interpretação da categoria “raça”, Graça Aranha mantém em Canaã uma perspectiva ambígua, tratando de um dos consagrados fatores determinantes da formação de civilizações.
Eles [os alemães] viriam agora em grandes massas (...) numa ânsia de posse e domínio (...) matando os homens lascivos e loucos que ali se formaram e macularam com suas torpezas a terra formosa; eles os eliminariam com o ferro e com o fogo; eles se espalhariam pelo continente; fundariam um novo império, se revigorariam eternamente na força da natureza que dominariam como uma vassala. (p. 85)
Com isto, transpõe a questão das relações do Brasil com o exterior de um nível de imigração civil e dissolução das “raças” mediante a atuação da “raça ariana” a um nível de invasão militar e genocídio. A imigração, apesar de alertar às possíveis cobiças do exterior, manifestadas – apenas – em sonho, é defendida, conforme o projeto de uma nova fusão de “raças” como único jeito de renovar e reanimar o País. O Brasil, parece, está num ponto zero de sua história, com um passado concluído e um futuro que ainda não começou. Aranha ilustra esta parada no tempo mediante uma metáfora forte: Da cidade do Porto do Cachoeiro como cidade dupla, separada pelo rio. De um lado a terra velha e mórbida, do outro a terra nova, “o limite de dois mundos”:
Um traduzia, na paisagem triste e esbatida do nascente, o passado, onde a marca do cansaço se gravava nas coisas minguadas. (...) E para o outro lado dela (...) uma terra nova, pronta a abrigar a avalancha que vinha das regiões frias do outro hemisfério e lhe descia aos seios quentes e fartos; e ali havia de germinar o futuro povo que cobriria um dia todo o solo e a cachoeira não dividiria mais dois mundos, duas histórias, duas raças que se combatem, uma com a pérfida lascívia, outra com a temerosa energia, até se confundirem num mesmo grande e fecundante amor. (p. 43)
A imagem lembra, à primeira vista, a descrição de Euclides da Cunha, feita n’Os Sertões das “sub-raças sertanejas do Brasil” que vegetariam em “deplorável situação mental, (...) destinados a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material inclusive das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra.” Mas em Canaã é salientada, mais ainda, a ambiguidade do “caráter dissolvente da imigração” como, de um lado, inevitável “demoronamento daquela cidade circundada de colônias estrangeiras que a estreitam lentamente até um dia vencer e transformar sem piedade”, mas, pelo outro, conscientizando o leitor do custo desta transformação, sendo “uma tragédia na alma do brasileiro, quando ele sente que não se desdobrará mais até o infinito” (p. 72). O processo, ainda se tratando do “branqueamento” pela imigração, é longe de ser um enriquecimento leve, pelo contrário, é suspeito de acabar com a Brasilidade: “(A) tradição rompeu-se, o pai não transmitirá mais ao filho a sua imagem, a língua vai morrer, os velhos sonhos de raça, os longínquos e fundos desejos da personalidade amudeceram, o futuro não atenderá o passado” (p. 72). Diante deste cenário resta a Paulo Maciel apenas a função de orador fúnebre: “Pobre Brasil!... Foi uma tentativa falha de nacionalidade. Paciência...” (p. 141). A fala apologética à imigração de Milkau, apresentando uma certa ingenuidade, neste contexto não passa de um eufemismo:” “E no futuro remoto, a época dos mulatos passará, para voltar à idade dos novos brancos, vindos da recente invasão, aceitando com reconhecimento o patrimônio dos seus predecessores mestiços“ (p. 203) [o grifo é meu].
Não é de se surpreender que o livro, colocando em cheque desta forma radical a existência e o futuro da “Nação” brasileira, evocou críticas fortes, pelas quais pode ser representativa a do escritor carioca Medeiros e Albuquerque: “Canaã é nitidamente anti-brasileiro.”
Outra, bastante significativa, veio da parte de Sílvio Romero: No romance, por exemplo, em obra simbólica, não cairia na criminosa loucura de representar o tipo brasileiro nalgum agrimensor idiota que não saiba armar o teodolito; ou nalguns politiqueiros do logarejo, para contrastar com pretenciosos germânicos, discutidores da metafísica e da política realista do imperialismo. (...) Não precisará de basbaquear o insolente europeu, gasto com a descritiva das matas, cheias de vagalumes, tamanhos como borboletas e tão numerosos como formigas.
Mas em Canaã é salientada, mais ainda, a invadir profundamente a nossa terra.” ambiguidade do “caráter dissolvente da imigração” como, de um lado, inevitável “demoronamento daquela cidade circundada de colônias estrangeiras que a estreitam lentamente até um dia vencer e transformar sem piedade”, mas, pelo outro, conscientizando o leitor do custo desta transformação, sendo “uma tragédia na alma do brasileiro, quando ele sente que não se desdobrará mais até o infinito” (p. 72). O processo, ainda se tratando do “branqueamento” pela imigração, é longe de ser um enriquecimento leve, pelo contrário, é suspeito de acabar com a Brasilidade: “(A) tradição rompeu-se, o pai não transmitirá mais ao filho a sua imagem, a língua vai morrer, os velhos sonhos de raça, os longínquos e fundos desejos da personalidade amudeceram, o futuro não atenderá o passado” (p. 72). Diante deste cenário resta a Paulo Maciel apenas a função de orador fúnebre: “Pobre Brasil!... Foi uma tentativa falha de nacionalidade. Paciência...” (p. 141). A fala apologética à imigração de Milkau, apresentando uma certa ingenuidade, neste contexto não passa de um eufemismo:” “E no futuro remoto, a época dos mulatos passará, para voltar à idade dos novos brancos, vindos da recente invasão, aceitando com reconhecimento o patrimônio dos seus predecessores mestiços“ (p. 203).
AUGUSTO DOS ANJOS
Além desses escritores podemos destacar também Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos, ou Augusto dos Anjos como é mais conhecido. Sua obra é marcada pelo pessimismo, pela angústia e pelo medo.
A poesia brasileira estava dominada por simbolismo e parnasianismo, dos quais o poeta paraibano herdou algumas características formais, mas não de conteúdo. A incapacidade do homem de expressar sua essência através da "língua paralítica" (Anjos, p. 204) e a tentativa de usar o verso para expressar da forma mais crua a realidade seriam sua apropriação do trabalho exaustivo com o verso feito pelo poeta parnasiano. A erudição usada apenas para repetir o modelo formal clássico é rompida por Augusto dos Anjos, que se preocupa em utilizar a forma clássica com um conteúdo que a subverte, através de uma tensão que repudia e é atraída pela ciência.
A obra de Augusto dos Anjos pode ser dividida, não com rigor, em três fases, a primeira sendo muito influenciada pelo simbolismo e sem a originalidade que marcaria as posteriores. A essa fase pertencem Saudade e Versos Íntimos. A segunda possui o caráter de sua visão de mundo peculiar. Um exemplo dessa fase é o soneto Psicologia de um Vencido. A última corresponde à sua produção mais complexa e madura, que inclui Ao Luar.
Principal poema
Versos íntimos
Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!
LEIA OUTROS POEMAS:
http://www.biblio.com.br/conteudo/AugustodosAnjos/augustodosanjosobras.htm
Outros completos online:
1. » Eu e Outras Poesias, de Augusto dos Anjos
2. » Eterna Mágoa, de Augusto dos Anjos .