Em: "História Concisa da Literatura Brasileira" (Alfredo Bosi)
Raquel de Queiroz
Na esteira do regionalismo, Raquel de Queiroz escreveu dois romances de ambientação cearense, O Quinze e João Miguel. Em ambos releva notar uma prosa enxuta e viva que seria depois tão estimável na cronista Raquel de Queiroz.
Ficção: O Quinze 1930; João Miguel, 1932; Caminho de Pedras, 1937; As Três Marias, 1939. Teatro: Lampião, 1953; A Beata Maria do Egito, 1958. Crônica: A Donzela e a Moura Torta, 1948; 100 Crônicas Escolhidas, 1958; O Brasileiro Perplexo, 1963; O Caçador de Tatu, 1967.
Confrontados com A Bagaceira, esses livros podem dizer-se mais próximos do ideal neorrealista que presidiria à narrativa social do Nordeste. Os períodos são, em geral, menos "literários", breves, colados à transcrição dos atos e dos acontecimentos. E o diálogo é corrente, lembrando às vezes a novelística popular que, mais tarde, atrairia a escritora ao passar do romance para o teatro de raízes regionais e folclóricas ( Lampião, A Beata Maria do Egito ).
O terceiro romance de Raquel de QueIroz, Caminho de Pedra, é conscientemente político: a sua redação, em 36, coincide com o exacerbar-se das correntes ideológicas no Brasil à beira do Estado-Novo: comunismo ( stalinista; trotzkista: esta a cor da romancista na época ) e integralismo. A autora passa da crônica de um grupo sindical na morna Fortaleza da época à exploração sentimental de um caso de amor de um par de pequena classe média afetado por ideais de esquerda. É um romance populista, isto é, um romance que situa as personagens pobres "de fora", como quern observa um espetáculo curioso que, eventualmente, pode comover. Os problemas psicológicos que já tendiam a ocupar o primeiro plano em Caminho de Pedras fazem-no decididamente na última experiência de ficção de Raquel de Queiroz, As Três Marias.
Já a curva ideológica da escritora poderá parecer estranha, paradoxal mesmo: do socialismo libertário de Caminho de Pedras às crônicas recentes de espírito conservador. Mas explica-se muito bem se inserida no roteiro do tenentismo que a condicionou: verbalmente revolucionário ern 30, sentimentalmente liberal e esquerdizante em face da ditadura, acabou, enfim, passada a guerra, identificando-se com a defesa passional das raízes do status quo; roteiro que a aproxima de Gilberto Freyre, cuja presença na cultura nordestina ultrapassou, de longe, a área do ensaísmo sociológico e incidiu diretamente na valoração das tradições, dos estilos de viver e de pensar herdados à sociedade patriarcal. De onde a nostalgia do bom tempo antigo que até recebeu o batismo da ciência: é a lusotropicologia.
José Lins do Rego
Passou a infância no engenho do avô materno. Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa) e Direito no Recife. Aqui se aproxima de intelectuais que seriam os responsáveis pelo clima modernista-regionalista do Nordeste: José Arnérico de Almeida, Olívio Montenegro e, sobretudo, Gilberto Freyre de quem receberia estímulo para dedicar-se à arte de raízes locais. Poucos anos depois, liga-se, em Maceió, a Jorge de Lima e a Graciliano Ramos. Transferiu-se, em 1935, para o Rio de Janeiro onde participou ativamente da vida literária defendendo com vigor polêmico o tipo do escritor voltado para a região de onde proveio.
Obra de ficção: Menino de Engenho,1932; Doidinho, 1933; Bangüê, 1934; O Moleque Ricardo, 1935; Usina, 1936; Pureza, 1937; Pedra Bonita, 1938; Riacho Doce, 1939; Água-Mâe, 1941; Fogo Morto, 1943; Euridice, 1947; Cangaceiros, 1953. Memórias: Meus Verdes Anos, 1956. Literatura Infantil: Histórias da Velha Totônia 1936. Crônica e Crítica: Gordos e Magros, 1942; Poesia e Vida, 1945; Homens, Seres e Coisas, 1952; A Casa e o Honrem, 1954· Presença do Nordeste na Literatura Brasileira, 1957; O Vulcão e a Fonte, 1958. Conferências: Conferências no Prata ("Tendências do Romance Brasileiro, Raul Pompéia, Machado de Assis' ), 1946; Discurso de Posse na A. B. L., 1957. Viagem: Bota de Sete Léguas, 1951; Roteiro de Israel, 1955; Gregos e Troianos, 1957.
A região canavieira da Paraíba e de Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no "ciclo da cana-de-açúcar" de José Lins do Rêgo a sua mais alta expressão literária.
Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa linguagem de forte e poética oralidade, as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região.
A gênese do ciclo inicial da sua obra, formado por Menino de Engenho, Doidinho, Bangüê, é, portanto, dupla, a memória e a observação, sendo a primeira responsável pela carga afetiva capaz de dinamizar a segunda e dar-Ihe aquela crispação que trai o fundo autobiográfico: e, de fato, a leitura de Meus Verdes Anos, história veraz da infância do escritor, logo nos faz reconhecer pontos nodais do romance de estreia, Menino de Engenho.
Ancorado nessa dupla contingência e aceitando-a de bom grado como a sua verdade estética, Lins do Rego sempre se declarou escritor espontâneo e instintivo, chegando a apontar nos cantadores de feira as fontes da sua arte narrativa:
Os cegos cantadores, amados e ouvidos pelo povo, porque tinham o que dizer, tinham o que contar. Dizia-lhes então: quando imagino meus romances tomo sempre como modo de orientação o dizer as coisas como elas surgem na memória, com o jeito e as maneiras simples dos cegos poetas.
Por conseguinte, o romance brasileiro não terá em absoluto que vir procurar os Charles Morgan ou os Joyce para ter existência real. Os cegos da feira lhe servirão muito mais como a Rabelais serviram os menestréis vagabundos da França. Ou ainda:
Gosto que me chamem telúrico e muito me alegra que descubram em todas as minhas atividades literárias forças que dizem de puro instinto.
São afirmações categóricas que, porém, não se podem tomar à letra, pois explicam menos o efetivo labor literário de Lins do Rêgo que a sua poética explícita, feita de lugares-comuns veristas afetados por um neo-romantismo nostálgico, afim à visão do mundo de Gilberto Freyre. Mas valem como sintoma de um grau de tensão (autor/realidade) menos consciente e, portanto, menos crítico, do que o testemunhado por um outro grande romancista do Nordeste: Graciliano Ramos. O autor de Doidinho está, em tese, a pouca distância do universo afetivo que o viu crescer. A sua vida espiritual é um assíduo retorno à paisagem do Engenho Santa Rosa, ao avô, o mítico senhor de engenho Coronel Zé Paulino, às histórias noturnas contadas pelas escravas, amas de leite, às angústias sexuais da puberdade, enfim ao mal-estar que o desfazer-se de todo um estilo de vida iria gerar na consciência do herdeiro inepto e sonhador. Não são memórias e observações de um menino qualquer, mas de um menino de engenho, feito à imagem e semelhança de um mundo que, prestes a desagregar-se, conjura todas as forças de resistência emotiva e fecha-se na autofruição de um tempo sem amanhã.
Entretanto, esse estado-limite de ilhamento ( que será a loucura de uma personagem trágica de Fogo Morto, o Coronel Lula de Holanda ) não se faz possível em termos absolutos. A criança do Menino de Engenho desdobra-se no adolescente inseguro de Doidinho, já em contato com o mundo da escola, e no bacharel Dr. Carlos de Mello, dividido entre a cidade e o engenho, e que, em Bangüê, Moleque Ricardo e Usina, será levado a tocar a realidade áspera da pobreza, da revolta e das esperanças de homens que não descendem de meninos de engenho.
A força de carrear para o romance o fluxo da memória, José Lins do Rego aprofundou a tensão eu/realidade, apenas latente nas suas primeiras experiências. E o ponto alto da conquista foi essa obra-prima que é Fogo Morto, fecho e superação do ciclo da cana-de-açúcar. A riqueza no plano do relaciona- mento com o real trouxe consigo maior força de estruturação literária. Assim sendo, o "espontaneísmo", apontado nas palavras do próprio José Lins como caráter inerente a seu trabalho de escritor ( "o dizer as coisas como elas surgem na memória" ), vem da ênfase em um momento limitado da sua história criadora; ênfase que coincide com um ponto de vista acrítico, antes orgânico do que problemático, no dizer feliz de Carpeaux ao apresentar Fogo Morto. Criaturas como o seleiro José Amaro, o Capitão Vitorino e o Coronel Lula de Holanda são expressões maduras dos conflitos humanos de um Nordeste decadente. Levou algum tempo para que o romancista se desapegasse do material de base, feito de obsessões pessoais, e se detivesse na fixação objetiva de caracteres capazes de transcender aquela fusão de escritor e criança, escritor e adolescente, peculiar à sua obra inicial. No conjunto, porém, fica de pé o processo constitutivo do romance de José Lins: a narrativa memorialista. E a prova dos nove encontramo-la no uso que o escritor sempre fez da linguagem: lugar privilegiado onde o espírito articula seqüências espaciais e temporais, exatamente como nos longos e movimenta- dos cantares de origem popular, que acumulam episódios, trechos descritivos notações morais alinhando-os no reino imenso da memória.
A observação do meio regional está no nascedouro do ciclo do misticismo e do cangaço, que abrange Pedra Bonita e Cangaceiros. Prosseguindo na abertura para a história, o escritor combina formas várias de relato objetivo: a lenda, a épica, a crônica. É o que se vê em Pedra Bonita, narração livre de um caso de fanatismo que se deu em Vila Bela no século XIX: alguns sertanejos, açoitados junto a duas pedras colossais, se ofereceram em holocausto a um mameluco, João Antônio da Silva, que lhes pro- metera, a troco do sacrifício, a felicidade eterna a ser fruída no Reino Encantado ali oculto. Muito provavelmente, José Lins terá extraído o material para o romance da literatura de cordel tão difundida no Nordeste desde o século passado. Os traços rapsódicos presentes nesse romance marcam também a fatura de Cangaceiros: estrutura justa- positiva, vocabulário coloquial e de calão, introdução de cantigas do folclore luso-nordestino e, sobretudo, repetições de palavras e frases que acabam compondo uma seqüência melódica. Valendo-me de um símile tomado à paisagem da região: o romance é, para o criador de Fogo Morto, como um rio que flui mansamente pelo fértil massapê paraibano; uma cor- rente que vai ora levando, ora acumulando as infinitas recordações da infância, sedimento de barro informe onde lhe é grato afundar o corpo inteiro.
Mesmo nas obras cuja ambientação foge ao Nordeste ( Água-Mãe, Euridice ), o processo de composição atém-se ao reiterativo, que neles serve não só para repropor certas paisagens e fundos-de-pano, mas também para criar almas presas ao eterno retorno do mesmo. Nessas obras, que a crítica subestimou como esforços me- nos felizes do autor para escrever ficção intimista, não é difícil reconhecer traços fatalistas de quem viveu até o fundo o drama de uma decadência social e o incorporou para sempre à sua vi- são do mundo. Atitude de todos os naturalistas ao se voltarem para o campo já abalado pelo espectro da revolução industrial, e cada vez menos capaz de inspirar mitos de paraíso perdido: foi o pessimismo de Hardy e de Verga; e seria, num clima espiritual mais árido que o de José Lins do Rego, a posição crítica de Graciliano Ramos.
Graciliano Ramos
Primogênito de um casal sertanejo de classe média que teve quinze filhos. Passou a infância parte em Buíque, Pernambuco, parte em Viçosa, no estado natal. Fez estudos secundários em Maceió, mas não cursou nenhuma faculdade. Em 1910 estabeleceu-se em Palmeira dos Índios onde o pai vivia de comércio. Após uma breve estada no Rio de Janeiro, como revisor do Correio da Manhã e de A Tarde (1914), regressou a Palmeira dos Índios ao saber da morte de três de seus irmãos vitimados pela febre bubônica. Passa a fazer jornalismo e política, exercendo a prefeitura da cidadezinha entre 1928 e 1930. Aí também redige, a partir de 1925, seu primeiro romance, Caetés. De 30 a 36, viveu quase todo o tempo em Maceió onde dirigiu a Imprensa e a Instrução do Estado. Data desse período a sua amizade com escritores que formavam a vanguarda da literatura nordestina: José Lins do Rêgo, Raquel de Queiróz, Jorge Amado, Waldemar Cavalcanti; é também a época em que redige São Bernardo e Angustia. Em março de 1936 é preso como subversivo. Embora sem provas de acusação, levam-no a diversos presídios, sujeitam-no a mais de um vexame e só o liberam em janeiro do ano seguinte: as Memórias do Cárcere serão o depoimento exato dessa experiência. Transferindo-se para s capital do país, Graciliano continuou a escrever e a publicar não só romances mas contos e livros para a infância. Por volta dos fins da Guerra o seu nome já está consagrado como o do maior romancista brasileiro depois de Machado de Assis. Em 1945, ingressou no Partido Comunista Brasileiro. Em 1951, foi eleito presidente da Associação Brasileira de Escritores; no ano seguinte viajou para a Rússia e os países socialistas, relatando o que viu em Viagem. Graciliano faleceu no Rio aos sessenta anos de idade.
Algumas Obras: Caetés,1933; São Bernardo, 1934; Angústia,1936; Vidas Secas, 1938; Brandão entre o Mar e o Amor; Memórias do Cárcere, 1953
É instrutivo, nesta altura, o contraste com José Lins do Rego. Este se entregava, complacente, ao desfilar das aparências e das recordações; Graciliano via em cada personagem a face angulosa da opressão e da dor. Naquele, há conaturalidade entre o homem e o meio; neste, a matriz de cada obra é uma ruptura.
O roteiro do autor de Vidas Secas norteou-se por um coerente sentimento de rejeição que adviria do contato do homem com a natureza ou com o próximo. Escrevendo sob o signo dialético por excelência do conflito, Graciliano não compôs um ciclo, um todo fechado sobre um ou outro polo da existência ( eu/mundo ), mas uma série de romances cuja descontinuidade é sintoma de um espírito pronto à indagação, à fratura, ao problema. O que explica a linguagem díspar de Caetés, Angústia, Vidas Secas, momentos diversos que só terão em comum o dissídio entre a consciência do homem e o labirinto de coisas e fatos em que se perdeu. E explica, em outro plano, o trânsito da ficção ao nítido corte biográfico de Infância e Memórias do Cárcere .
O realismo de Graciliano não é orgânico nem espontâneo. É crítico. O "herói" é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta familiar ou grupal, introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível. E o romancista encontra no trato analítico dessa más cara a melhor fórmula de fixar as tensões sociais como "primeiro motor" de todos os comportamentos. Esta a grande conquista de Graciliano: superar na montagem do protagonista ( verdadeiro "primeiro lutador" ) o estágio no qual seguem caminhos
"opostos o painel da sociedade e a sondagem moral. Daí parecer precária, se não falsa, a nota de regionalismo que se costuma dar a obras em tudo universais como São Bernardo e Vidas Secas. Nelas, a paisagem capta-se menos por descrições miúdas que por uma série de "tomadas" cortantes; e a natureza interessa ao romancista só enquanto propõe o momento da realidade hostil a que a personagem responderá como lutador em São Bernardo, retirante em Vidas Secas, assassino e suicida em Angústia.
Em Caetés, livro de estreia muito próximo das soluções realistas tradicionais, a tensão geradora não se concentra tanto no eu-narrador quanto nas notações irônicas do meio provinciano ( a alusão a Eça é aqui obrigatória, menos o cuidado do brilho que acompanhava o romancista português ) . Sente-se um escritor ainda ocupado na formalização da própria memória, fase superada no livro seguinte, São Bernardo, e em toda a evolução literária de Graciliano que não seria, positivamente, um romancista de costumes. Mas sempre que se falar de neo-realismo a propósito deste romance de província que é Caetés, deve-se reconhecer o seu matiz próprio de distanciamento que lembra antes um Machado de Assis ( menos estóico ) ou um Lima Barreto ( mais contido ) do que os naturalistas de grandes murais como Aluísio ou Inglês de Sousa. Do livro, ficou o recurso de fazer da personagem também o autor de um romance, o que potencia a agudeza da análise e o mordente da sátira. Mas é em São Bernardo que o foco narrativo em primeira pessoa mostrará a sua verdadeira força na medida em que seria capaz de configurar o nível de consciência de um homem que, tendo conquistado a duras penas um lugar ao sol, absorveu na sua longa jornada toda a agressividade latente em um sistema de competição. Paulo Honório cresceu e afirmou-se no clima da posse, mas a sua união com a professorinha idealista da cidade vem a ser o único, e decisivo malogro daquela posição de propriedade estendida a um ser humano. Tragédia do ciúme, no plano afetivo, e, ao mesmo tempo, romance do desencontro fatal entre o universo do ter e o universo do ser, São Bernardo ficará, na economia extrema de seus meios expressivos, como paradigma de romance psicológico e social da nossa literatura. Também aqui vira escritor o herói decaído a anti-herói depois do suicídio da mulher que a sua violência destruíra. O próprio ato de narrar está assim preso à frustração de base; e esta não é uma condição metafísica ( como no pessimismo de Machado, de cadências schopenhauerianas ), mas se estrutura em contextos bem determinados e assume as faces que esses contextos podem configurar. A relação aparece claramente no texto quando Paulo Honório se analisa: "Creio que nem sempre fui egoísta e brutal.
A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança que me aponta inimigos em toda parte! A desconfiança é também conseqüência da profissão." Ou: "A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste que me deu uma alma agreste."
Também a solidão de Luís da Silva, em Angústia, cola-se à vida de um pequeno funcionário, de veleidades literárias, mas condenado a esgueirar-se na mornidão poenta das pensõezinhas de província e a repetir até à náusea os contatos com um meio onde o que não é recalque é safadeza. Tudo nesse romance sufocante lembra o adjetivo "degradado" que se apõe ao universo do herói problemático. A existência de Luís da Silva arrasta-se na recusa e na análise impotente da miséria moral do seu mundo e, não tendo outra saída, resolve-se pelo crime e pela autodestruição. O livro avança com a rapidez do objeto que cai: sempre mais velozmente e mais pesadamente rumo à morte e ao nada. Estamos no limite entre o romance de tensão crítica e o romance intimista. De um lado, a brutalidade da linguagem que degrada os objetos do cotidiano, avilta o rosto contemplado e cria uma atmosfera de mau-humor e de pesadelo; de outro, a auto-análise, a "parada" que significa o esforço de compreender e de dizer a própria consciência. E tudo parece preparar o longe monólogo final que abraça um sem-número de imagens de um mundo hostil e as aquece com a febre que a recusa absoluta produziu na alma do narrador. Romance existencialista avant la lettre, Augústia foi a experiência mais moderna, e até certo ponto marginal, de Graciliano. Mas a sua descendência na prosa brasileira está viva até hoje.
A rejeição assume dimensões naturais, cósmicas, em Vidas Secas, a história de uma família de retirantes que vive em pleno agreste os sofrimentos da estiagem. É supérfluo repetir aqui o quanto o esforço de objetivação foi bem logrado nessa pequena obra-prima de sobriedade formal. Vidas Secas abre ao leitor o universo mental esgarçado e pobre de um homem, uma mulher, seus filhos e uma cachorra tangidos pela seca e pela opressão dos que podem mandar: o "dono", o "soldado amarelo" . . O narrador que, na aparência gramatical do romance de 3.. pessoa, sumiu por trás das criaturas, na verdade apenas deslocou o "fatum" do eu para a natureza e para o latifúndio, segunda natureza do Agreste. E o que havia de unitário nas obras anteriores, apoiadas no eixo de um protagonista, dispersa-se nesta em farrapos de ideias, no titubear das frases, nos "casulos de vida isolada que são os a diversos capítulos" ( 323 o enfim, na desagregação a que o meio arrasta os destinos inúteis de Fabiano, Sinhá Vitória, Baleia . . .
No livro de memórias, Infância, uma interpretação existencial acharia numerosas pistas, mas creio que subsistiria sempre como categoria unificante a ideia de rejeição que marca o conjunto dos romances e aqui aparece em toda parte, desde o desenho admirável que Graciliano faz dos pais, primeiros mestres na escola do medo e do arbítrio: Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um homem sério, de testa larga uma das mais belas testas que já vi, dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura. Esses dois entes difíceis ajustavam-se. Na harmonia conjugal a voz dele perdia a violência, tomava inflexões estranhas, balbuciava carícias decentes. Ela se amaciava, arredondava as arestas, afrouxava os dedos que nos batiam no cocoruto, dobrados, e tinham dureza de martelos. Qualquer futilidade, porém, ranger de dobradiça ou choro de criança, lhe restituía o azedume e a inquietação.
Em Memórias do Cárcere, um dos mais tensos depoimentos da nossa época e, por certo, o mais alto da nossa literatura, Graciliano aí narra as vicissitudes de sua prisão política em 1936-37. Mas as Memória não se devem ler só como testemunho histórico. Elas desenvolveram, até certo limite de rigidez, alguns traços do estilo do romancista. Hoje a pesquisa estrutural tem confirmado com a precisão das suas análises o que a crítica mais atenta sempre vira na linguagem de Graciliano: a poupança verbal; a preferência dada aos nomes de coisas e, em conseqüência, o parco uso do adjetivo; a sintaxe clássica, em oposição ao à-vontade gramatical dos modernistas e, mesmo, dos outros prosadores do Nordeste.
Parece evidente que a modernidade de Graciliano Ramos tem pouco a ver com o Modernismo e nada a ver com as modas literárias para as quais o escritor pode apresentar um quê de inatual. Ela vem da sua opção pelo maior grau possível de despojamento, pela sua recusa sistemática de intrusões pitorescas, chulas ou piegas, situando-se no polo oposto do "populismo" - tanto o vulgar quanto o sofisticado - que tem manchado tantas vezes a atitude dos fruidores da "vitalidade" do homem simples. Vitalidade que acaba servindo de pretexto para projetar fixações regressivas do próprio escritor, como é o caso da maior parte dos romances de Jorge Amado.
Jorge Amado
Filho de um comerciante sergipano que chegou a proprietário de terras na região do cacau (sul da Bahia). Fez o curso primário em Ilhéus e o secundário com os jesuítas em Salvador e no Rio. Na capital baiana levou vida de jornalista boêmio nos fins da década de 20. O Modernismo encontrava então, na Bahia, os primeiros ecos e as primeiras oposições: J. Amado ligou-se à efêmera "Academia dos Rebeldes", grupo de que faziam parte o poeta Sosígenes Costa e o futuro historiador e folclorista Edson Carneiro. Indo para o Rio em 30 para fazer Direito, ai conhece alguns escritores jovens ( Otávio de Faria, Santiago Dantas, Augusto Frederico Schmidt) que o animam a publicar O País do Carnaval (1931). Em 32, em parte por influência de Raquel de Queiroz, aproxima-se da militância esquerdista: lê novelas da nova literatura proletária russa e do realismo bruto norte-americano (Michael Gold, Steinbeck). Viaja repetidas vezes pelo interior da Bahia e de Sergipe e procura transpor os casos que vê e ouve para uma série de romances populistas: Cacau (que se passa na zona de Ilhéus ) e o ciclo dos romances urbanos de Salvador (Suor, Jubiabá, Mar Morto, Capitães de Areia).
Cronista de tensão mínima, soube esboçar largos painéis coloridos e facilmente comunicáveis. Nos anos da II Guerra faz literatura de propaganda política e envolve-se na oposição ao Estado Novo, sendo preso em 1942. Livre, passa algum tempo na Bahia onde retoma literariamente cenas e tipos de Cacau, em Terras do Sem-Fim e São Jorge de Ilhéus. Eleito deputado, em 1946, pelo P. C. B., resolve exilar-se quando do fechamento deste. Viaja longamente pela Europa Ocidental e pela Ásia (1948-52). As traduções dos seus livros alcançam então altas tiragens nos países socialistas. Voltando ao Brasil, traz escritas obras partidárias (O Mundo da Paz, Os Subterrâneos da Liberdade). Instala-se, por algum tempo, no Rio, onde dirigirá o seminário Para Todos. A partir de 1958, voltou a escrever seguidamente romances e novelas de ambientação regional, já agora em linguagem menos polêmica e mais estilizada. O romancista, em Salvador, afastado das lides políticas é membro da Academia Brasileira de Letras.
Na sua obra podem-se distinguir:
a ) um primeiro momento de águas-fortes da vida baiana, rural e citadina ( Cacau, Suor ) que lhe deram a fórmula do "romance proletário";
b ) depoimentos líricos, isto é, sentimentais, espraiados em torno de rixas e amores marinheiros ( Jubiabá, Mar Morto, Capitães de Areia);
c ) um grupo de escritos de pregação partidária ( O Cavaleiro da Esperança, O Mundo da Paz);
d ) alguns grandes afrescos da região do cacau, certamente suas invenções mais felizes, que animam de tom épico as lutas entre coronéis e exportadores ( Terras do Sem-Fim, São Jorge dos Ilhéus);
e ) mais recentemente, crônicas amaneiradas de costumes provincianos ( Gabriela, Cravo e Canela, Dona Flor e Seus Dois
Maridos). Nessa linha, formam uma obra à parte, menos pelo espírito que pela inflexão acadêmica do estilo, as novelas reunidas em Os Velhos Marinheiros. Na última fase abandonam-se os esquemas de literatura ideológica que nortearam os romances de 30 e de 40; e tudo se dissolve no pitoresco, no "saboroso", no "gorduroso", no apimentado do regional.
Érico Veríssimo
Só há um romancista brasileiro que partilha com Jorge Amado o êxito maciço junto ao público: Érico Veríssimo. Nascido no meio de uma família rica e tradicional que se arruinou no começo do século, o escritor conheceu de perto o drama da decadência, motivo de algumas das suas melhores páginas.
Mudando-se em 1930 para Porto Alegre, aproxima-se do expoente do Modernismo gaúcho, Augusto Meyer, que o encaminhou para o jornalismo literário. De 33 até o fim do decênio, Veríssimo compõe os romances do ciclo de Vasco e Clarissa, nos quais a crítica logo reconheceu a presença de certa ficção inglesa e norte-americana (Huxley, Dos Passos, Mansfield). Verdadeiros best-sellers, os seus livros foram vertidos para as principais línguas cultas. Para compor a saga da pequena burguesia gaúcha depois de 1930, o romancista buscou realizar um meio termo entre a crônica de costumes e a notação intimista. A linguagem com que resolveu esse compromisso é discretamente impressionista, caminhando por períodos breves, justaposições de sintaxe...
De 1948 a 1960, o escritor dedicou-se à elaboração da trilogia da vida gaúcha que é O Tempo e o Vento. Mais recentemente, escreveu romances que espelham tensões políticas de nossos dias.
Obras de ficção: Fantoches 1932; Clarissa, 1933; Música ao Longe, 1935; Caminhos Cruzados 1935; Um Lugar ao Sol, 1936; Olhai os Lírios do Campo, 1938; Saga, 1940; As Mãos de Meu Filho, 1942; O Tempo e o Vento. I. O Continente 1949; O Tempo e o Vento. II. O Retrato, 1951; O Tempo e o Vento III. O Arquipé- lago, 1961; O Senhor Embaixador 1965; O Presidente, 1967.
A mediedade ( não confundir com "mediocridade" ) dessa ficção nos deu figuras humanas representativas, mas não rígidas. O frescor de Clarissa toda entregue a seus sonhos de adolescente e incapaz de entender as razões objetivas da infelicidade familiar; a rebeldia e o topete de Vasco, enxerto do imigrante rejeitado no velho tronco em declínio; o mundo alienado do jovem intelectual pequeno-burguês que é Noel: tudo isso poderia virar estereótipo a qualquer momento, não fosse o dom que tem o escritor de colher com extrema naturalidade os estados de alma díspares de cada personagem. E a técnica do contraponto, aprendida em Huxley, veio ajudá-lo a passar rapidamente de uma situação a outra, salvando-se de um escolho que lhe seria fatal: o ter que submeter a análises mais profundas as tensões internas dos protagonistas. Assim, o cronista feliz impediu que aparecesse um mau intimista.
Veríssimo passou do corte sincrônico dos primeiros romances para o vasto painel diacrônico de O Tempo e o Vento. Neste ciclo o contraponto serve para apresentar o jogo das gerações: portugueses e castelhanos nos tempos coloniais; farrapos e imperiais durante as lutas separatistas; maragatos e florianistas sob a Revolta da Armada, em 1893. A história de duas famílias, os Terra Cambará e os Amaral, atravessando dois séculos de vida perigosa, é o fio romanesco que une os episódios do ciclo e embasa as manifestações de orgulho, de ódio, de amor e de fidelidade; paixões que assumem uma dimensão transindividual e fundem-se na história maior da comunidade.
Lygia Fagundes Telles fixa, em uma linguagem límpida e nervosa, o clima saturado de certas famílias paulistas cujos descendentes já não têm norte; mas é na evocação de cenas e estados de alma da infância e da adolescência que tem alcançado os seus mais belos efeitos.
Experiência cortante de neo-realismo psicológico é a de Carlos Heitor Cony, narrador que oscila entre a representação do universo degradado da "persona" burguesa e a ênfase no compromisso individual perante a sociedade, caminho do romance "político" em sentido lato.
Já o neo-realismo das histórias curtas de Dalton Trevisan acha-se animado de um frio desespero existencial que o leva a projetar, na sua voluntária pobreza de meios, as obsessões e as misérias morais da sua Curitiba. Como todo verismo que nasce não do cuidado de documentar mas de uma violenta tensão entre o sujeito e o mundo, a arte de Trevisan cruza o limiar do expressionismo. Que se reconhece no uso do grotesco, do sádico, do macabro, comum a tantos dos seus contos.
João Guimarães Rosa
Obra: Sagarana ( contos ), 1946; Corpo de Baile (ciclo novelesco), 1956; Grande Sertão: Veredas (romance), 1956; Primeiras Estórias 1962 ; Tutaméia: Terceiras Estórias, 1967; Estas Estórias (póst., 1969). G. Rosa deixou inédito Magma, poemas.
Filho de um pequeno comerciante estabelecido na zona pastoril centro-norte de Minas, aprendeu as primeiras letras na cidade na- tal. Fez o curso secundário em Belo Horizonte revelando-se desde cedo um apaixonado da Natureza e das línguas. Cursou Medicina e, formado, exerceu a profissão em cidades do interior mineiro (Itaúna, Barbacena). Nesse período estudou sozinho alemão e russo. Em 1934, fez concurso para o Ministério do Exterior. Ingressando na carreira diplomática, serviu como cônsul-adjunto em Hamburgo, sendo internado em Baden-Baden quando o Brasil declarou guerra à Alemanha. Foi secretário de embaixada em Bogotá e conselheiro diplomático em Paris. De volta ao Brasil ascende a ministro (1958). Um dos seus últimos encargos de profissional foi a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras que o levou a tratar casos espinhosos como o do Pico da Neblina e o das Sete Quedas.
Da sua carreira de escritor, em grande parte afastado da vida literária, só obteve o reconhecimento geral a partir de 1956, com Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Mas publicadas estas obras, o reconhecimento cresceu a ponto de melhor chamar-se glória. Há traduções de suas obras para o francês, o italiano, o espanhol, o inglês e o alemão. G. Rosa faleceu de enfarte, aos cinquenta e nove anos, três dias depois de admitido solenemente à Academia Brasileira de Letras.
A alquimia, operada por João Guimarães Rosa, tem sido o grande tema da nossa crítica desde o aparecimento dessa obra espantosa que é Grande Sertão: Veredas.
Após a sua leitura, começou-se a entender de novo uma antiga verdade: que os conteúdos sociais e psicológicos só entram a fazer parte da obra quando veiculados por um código de arte que lhes potencia a carga musical e semântica. E, em consonância com todo o pensamento de hoje, que é um pensar a natureza e as funções da linguagem, começou-se a ver que a grande novidade do romance vinha de uma alteração profunda no modo de enfrentar a palavra. Para Guimarães Rosa, como para os mestres da prosa moderna (um Joyce, um Borges), a palavra é sempre um feixe de significações: mas ela o é em um grau eminente de intensidade se comparada aos códigos convencionais. Além de referente semântico, o signo estético é portador de sons e de formas que desvendam, fenomênicamente, as relações íntimas entre o significante e o significado.
A escritura de Guimarães Rosa procede abolindo intencionalmente as fronteiras entre narrativa e lírica, distinção batida e didática, que se tornou, porém, de uso embaraçante para a abordagem do romance moderno.
Do mimetismo entre culto e folclórico de Sagarana, o escritor soube zarpar para ousadas combinações de som e de forma nas obras maduras, coalhadas de termos e grupos nominais como êssezinho, êssezim, salsim, satanazim, semblar, levantante, maravilhal, fluifim (adj.), gaviãoão, ossoso, vivoso, brishrisa, cavalanços, refrio, retrovão, remedir, deslei.
O que se passa com a linguagem de Guimarães Rosa no tratamento das unidades verbais ( fonemas, morfemas ) , ocorre também no plano dos grandes blocos de significado: as suas estórias são fábulas, mythoi que velam e revelam uma visão global da existência, próxima de um materialismo religioso, porque panteísta, isto é, propenso a fundir numa única realidade, a Natureza, o bem e o mal, o divino e o demoníaco, o uno e o múltiplo.
"O sertão é do tamanho do mundo." "O jagunço é o sertão." "Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo." Nesse Todo positivo e negativo interpenetram-se o sensível e o espiritual de tal sorte que o último acaba parecendo uma atenção oculta da matéria ( "Tem diabo nenhum, nem espírito ), que se manifesta nos modos pré-lógicos da cultura: o mito, a psique infantil, o sonho, a loucura. A alma desmancha-se nas pedras, nos bichos, nas árvores, como o sabor que não se pode abstrair do alimento.
Sujeito e objeto opõem-se na aparência, mas no fundo partilham de algo infinitamente mutável: o devir.
Eenãoé. Tudoéenãoé... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois - e Deus, junto. Vi muitas nuvens.
Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam.
O mitopoético foi a solução romanesca de Guimarães Rosa.